A comparação é inevitável. Durante a Segunda Guerra Mundial, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill decretou que cosméticos e maquiagem eram itens essenciais em qualquer estabelecimento do Reino Unido. Em uma simples canetada, o frio e calculista político antinazista tirou as fabricantes de produtos de beleza da lista dos setores que deveriam se dedicar ao esforço de guerra e produzir suprimentos para as tropas militares do país. “Agora, mais do que nunca, a beleza é seu dever (beauty is your duty)”, afirmou Churchill, numa entrevista à revista Vogue, em 1941. A reação das mulheres foi imediata. Em poucos dias, as perfumarias e farmácias estavam com os estoques vazios. O fenômeno, até então desconhecido, entrou para a história como “o efeito batom”. Churchill compreendeu que lábios vermelhos erguiam o moral da nação em meio às atrocidades da batalha, além de fazer com que as mulheres se sentissem mais otimistas, mais confiantes e mais atraentes, sentimentos essenciais para superação da crise.

Os tempos são outros, o front não é no campo de batalha, mas o efeito batom continua o mesmo durante a maior pandemia dos últimos 100 anos. Pelo menos é o que mostra a operação brasileira da L’Oréal, maior companhia global da indústria da beleza, com faturamento de 27,9 bilhões de euros no ano passado. A América Latina, segunda região mais castigada pela Covid-19, com índice de 463 mortes para cada milhão de habitantes (só atrás da Europa, com 555 óbitos na mesma comparação, segundo cálculos da Reuters) é a que apresenta o maior crescimento na demanda por produtos de cuidados pessoais, seja para cabelos, para pele ou maquiagem. No primeiro semestre deste ano, a região — em que o Brasil responde por cerca de 70% das vendas da empresa, segundo analistas do setor — cresceu 32,8% na companhia francesa, com faturamento de 809 milhões de euros. Já a receita total da companhia aumentou 21% nos primeiros seis meses deste ano na comparação com a primeira metade de 2020, e somou 13,08 bilhões de euros em vendas.

DO BRASIL PARA O MUNDO Centro de pesquisas da L’Oréal no Rio de Janeiro é um dos principais do grupo no desenvovilmento de produtos para diferentes tons de pele e tipos de cabelo. (Crédito:Rogerio Resende)

O bom resultado pode ser considerado um lifting bem-sucedido no balanço do grupo. O consolidado de 2020 tinha sido prejudicado pelo derretimento do valor do real. Embora as vendas tenham subido em volume em todas as categorias, e a receita tenha alcançado 1,469 bilhão de euros na América Latina, houve uma ligeira queda de 1,5%. A cifra ficou no vermelho porque acabou afetada principalmente pela desvalorização do real e de moedas vizinhas, como o peso argentino. A empresa vendeu em moeda local e contabilizou em euros. No ano passado, o real perdeu quase 30% de seu valor frente ao dólar, a terceira maior desvalorização cambial em uma lista de 121 países. Ficou atrás apenas da Zâmbia e da Venezuela.

O desempenho de 2021, no entanto, parece ter rejuvenescido as rugas causadas pela turbulência global do ano passado. A região se destacou como a melhor entre todas as operações da L’Oréal no planeta. Na Ásia, a expansão alcançou 27,3%. Em seguida vieram América do Norte (23,2%), Pacífico Sul, Oriente Médio e Norte da África (19,9%) e Europa (11,9%). “A operação brasileira se tornou um de nossos principais laboratórios de inclusão, diversidade e crescimento no mundo”, disse à DINHEIRO o paulistano Marcelo Zimet, 46 anos, presidente da L’Oréal Brasil. “O País tem papel fundamental nas estratégias de investimento, inovação, diversidade, inclusão e resultados do grupo”, afirmou o executivo, que assumiu a cadeira em abril no lugar da belga An Verhulst-Santos.

Embalado pelos bons resultados no Brasil, Zimet tem a missão de acelerar o processo de transformação digital, ampliar o atual portfólio de 21 marcas da L’Oréal no País (no mundo são 36) e trazer novos produtos às marcas já existentes e, principalmente, conduzir a subsidiária na estratégia de crescimento orgânico e por aquisições. Desde o fim de 2019, duas novas grifes do grupo foram trazidas ao Brasil: Garnier Skinactive e Cerave. “Não posso afirmar quais marcas virão porque tudo pode mudar, mas é certo que vamos acelerar nossa ampliação”, disse o presidente. “E também estamos abertos a qualquer tipo de aquisição de empresa que tenha relação com o nosso negócio, inclusive empresas de tecnologia e de serviços, dentro do planejamento de nos consolidar não apenas como uma empresa de produto, mas como a maior beautytech do mundo.”

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Ser cada vez mais uma empresa de tecnologia, não apenas uma fabricante de cosméticos, é fundamental para a longevidade da centenária L’Oréal, fundada em Paris em 1909, e no Brasil desde 1939. Para a professora do Ibmec Rio, mestre em marketing Rosana de Moraes, especialista em produtos e serviços de luxo, o Brasil vive um intenso ciclo de sofisticação do consumo de produtos premium, com destaque para itens de cuidados pessoais. “O consumo não anda para trás. Depois que a gente se habitua a determinado produto de maior qualidade, a tendência é permanecer”, afirmou Rosana. “Além disso, não só o Brasil está com mais acesso ao que existe de melhor no mundo, como as empresas brasileiras estão se globalizando numa velocidade impressionante. Basta olhar para Natura, O Boticário ou mesmo Granado e Phebo, que avançam forte no mercado europeu.”

E-COMMERCE Um dos maiores impulsos para Zimet — talvez o maior deles — tem sido administrar o crescimento exponencial pelos canais digitais. Em 18 meses, o e-commerce da empresa dobrou o volume de vendas e hoje representa 20% do faturamento da companhia. O porcentual já alcançado era a meta a ser atingida em 2025. Agora, o plano é chegar a 50% em quatro anos. “Ainda não saímos da pandemia, mas percebemos que o ritmo dos canais digitais de distribuição vai se manter. Isso veio para ficar. Mesmo com a reabertura das lojas físicas, as vendas pelo e-commerce não caíram”, afirmou.

Outro grande desafio do novo presidente é ampliar o índice de nacionalização de suas fábricas no País. Apesar de produzir localmente mais de 90% de tudo que vende no Brasil, a alta de dólar é um fator de custo importante e um detalhe a ser acompanhado com lupa. “Temos tomado muito cuidado em repassar altas para os consumidores, já que se leva muito tempo para construir uma marca com forte relação com o cliente, e o preço não pode ser impeditivo a consumidores de nenhuma faixa de renda.”

Os números da Nielsen, uma das maiores consultorias de pesquisa em varejo do mundo, endossam a afirmação de Zimet. No primeiro semestre deste ano, a categoria higiene e beleza teve alta de 5% em valor de vendas, bem abaixo da alta da cesta de bebidas (24%), alimentação (19%) e limpeza (9%). A média do varejo, incluindo todas as categorias que compõem a Pesquisa Cesta Nielsen, ficou em 18%. Em volume, o setor ficou estável, contra alta de 11,3% em bebidas, 3% em limpeza e 1% em alimentos. “Mais uma vez, a indústria de cuidados pessoais tem mostrado resiliência em momentos de crise”, afirmou Margareth Utimura, líder da indústria de higiene e beleza da Nielsen. “Mesmo com a maior restrição de renda da população neste ano, com os cortes nos pagamento do Auxílio Emergencial, que levou o País a ter 60% das famílias em condição restringida [quando há na algum desempregado em casa, alto endividamento ou houve queda na renda familiar], o acesso a novidades, a democratização da informação e a incorporação de uso de itens como protetor solar, ajudou o setor a se manter em alta”, disse.

AUTOESTIMA NA CRISE Na Segunda Guerra, o governo britânico incluiu o batom na lista de produtos essenciais para elevar o moral da população. (Crédito:Reprodução)

Sob o comando de Zimet, a fórmula brasileira da L’Oréal tem visivelmente mostrado resultados e, pelo desempenho impresso nos balanços, o executivo tem conseguido cumprir o principal lema do grupo: Saisir ce qui commence! Em tradução livre, algo como “aproveite o que está por vir”.

ENTREVISTA:
Marcelo Zimet, presidente da L’Oréal Brasil

“Não é qualquer variação de curto prazo que vai mudar nossa estratégia no País” (Crédito:Fábio Cordeiro)

Qual foi a fórmula na crise?
A L’Oréal soube trabalhar muito bem esse período de pandemia. Como trabalhamos em todos os segmentos e faixas de preços, conseguimos fazer ajustes e compensações em momento de transformações na crise. Isso se reflete nos nossos resultados.

Em isolamento, os brasileiros dedicaram mais tempo a se cuidar?
Sim. Cuidados para pele tiveram aceleração muito grande, juntamente com outros produtos, como cuidado capilar. Todos com crescimento de duplo dígito. Nossa indústria teve um papel muito importante durante a pandemia, que ainda não acabou, de ajudar as pessoas a melhorar a autoestima.

Qual o plano em marcas e produtos?
Objetivo é continuar expandindo o portfólio no Brasil. Podemos trazer algumas das 36 marcas do grupo, e também aquisições e desenvolvimento de marcas no Brasil. Não posso dizer quais virão, mas trouxemos a Cerave e a Garnier Skinactive, que traz uma bandeira da diversidade e inclusão como um motor de crescimento. Lançamos produtos voltados a diferentes tonalidades de pele, codesenvolvidas com consumidoras e até influencers, inclusive a cantora Iza. A operação brasileira se tornou um dos nossos principais laboratórios de inclusão, diversidade e crescimento. O momento é de investir e crescer.

O País, dada a miscigenação da população, é uma plataforma de exportação para o grupo?
Chamamos de inovação reversa. O que o Brasil desenvolve não necessariamente fica no Brasil. Há várias tecnologias que fazemos aqui, como recentemente o Elséve Hialurônico, que está sendo um super sucesso, que foi um desenvolvimento brasileiro e está sendo expandido para o todo o mundo. Essa é a beleza de trabalhar numa empresa como a L’Oréal.

O Brasil, como o quarto maior mercado no setor de beleza, é muito disputado por empresas nacionais. Como lidar com a concorrência?
A concorrência é sempre bem-vinda porque faz a gente realizar um trabalho sempre melhor, e acelera nossa transformação. Há empresas incríveis no Brasil, como Natura e O Boticário, que a gente respeita muito, além de muitas outras menores que fazem um excelente trabalho, mas isso serve para a L’Oréal implementar um trabalho cada vez melhor. Em sustentabilidade, por exemplo, neste ano já seremos carbono zero, quatro anos antes do previsto.

O ambiente econômico do País não preocupa?
Acredito muito no Brasil. Acredito no potencial. Não é qualquer variação de curto prazo que vai mudar nossa estratégia no País. Não tenho como julgar as decisões econômicas da gestão do País. O que posso dizer é que para companhias como a L’Oréal, na hora de investir, são considerados sempre questões de segurança jurídica, tributária e visão de médio e longo prazo.