O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), abriu uma crise política ao ameaçar “enquadrar” a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Barros afirmou ao Estadão nesta quinta-feira que os diretores da agência estão “fora da casinha” e “nem aí” para a pandemia de covid-19. Mais tarde, o presidente Jair Bolsonaro desautorizou seu líder e saiu em defesa da agência.

Com capital político reforçado após a vitória nas eleições da Câmara e do Senado, o parlamentar do Centrão prometeu mobilizar a maioria governista para aprovar projetos que acelerem o registro de novas vacinas no País. “O que eu apresentar para enquadrar a Anvisa passa aqui (na Câmara) feito um rojão.” Emparedado, o diretor-presidente da Anvisa, o médico e militar Antônio Barra Torres, cobrou retratação, o que não ocorreu, e sugeriu que o líder apresente uma denúncia formal sobre a demora.

Jair Bolsonaro entrou no circuito para amparar Barra Torres. Ciente de que Barros não falava apenas por si, o presidente tentou amenizar as cobranças do Centrão sobre a agência – o grupo de parlamentares fisiológicos virou sua base no Congresso e cobiça cargos de primeiro escalão na Esplanada. Em viagem a Santa Catarina, Bolsonaro disse que a “nossa Anvisa” possui um “histórico de trabalho muito bom”. “Eu sempre disse: uma vez aprovada pela Anvisa, sem pressão de ninguém, a vacina será comprada. Ninguém fala por mim diante de uma agência, seja qual for”, discursou ontem.

O presidente ainda convidou Barra Torres para uma live nas redes sociais, procedimento cada vez mais comum quando quer prestigiar ministros “fritados” em público. Na transmissão ao vivo, desautorizou Barros. “A agência não pode sofrer pressão de quem quer que seja. Eu não interfiro em agência nenhuma”, afirmou, em transmissão ao vivo pelas redes sociais. “Ninguém vai me representar na Anvisa porque lá mexe com vidas. Não é coisa que deu errado e você conserta na frente.”

A queda de braço ocorre no momento em que o Palácio do Planalto e o Congresso desejam acelerar o aval a novas vacinas, com destaque para a Sputnik V, apelidada por governistas como “vacina do Bolsonaro”. Além disso, para não depender da Coronavac, imunizante associado ao governador paulista, João Doria (PSDB), o Ministério da Saúde avança na compra da Sputnik V e da Covaxin, que é desenvolvida na Índia. A Anvisa, porém, ainda aguarda mais dados sobre a segurança e a eficácia desses produtos.

União Química

O lobby da Sputnik é reforçado por caciques políticos de Brasília. O laboratório União Química, que fechou contrato com os russos para produzir o imunizante no País, costumava financiar campanhas eleitorais quando a doação por empresas era permitida. O dono da empresa, Fernando de Castro Marques, foi candidato a senador pelo Solidariedade em 2018, mas não se elegeu.

O atual diretor de negócios internacionais do laboratório, Rogério Rosso, é uma antiga liderança do Centrão. Foi deputado federal pelo PSD e governador do Distrito Federal. Em 2016, chefiou a comissão que deu aval ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e concorreu à presidência da Câmara como herdeiro da bancada de Eduardo Cunha (MDB-RJ), que seria cassado e preso.

Ao reagir às declarações de Ricardo Barros, o presidente da Anvisa disse que não pode acusar o líder de governo de agir sob interesses de laboratórios. “Não tenho de tecer comentários sobre algo que eu não tenho comprovação.”

“Eles não entenderam ainda. Estão fora da casinha, não sabem que estamos numa pandemia, que precisamos de coisas urgentes, que precisamos facilitar a vida das pessoas. Não é possível que tenha 11 vacinas aprovadas em agências no mundo inteiro e nós só temos duas, e eles não estão nem aí com o problema”, disse Barros.

Ex-ministro da Saúde no governo Michel Temer (2016-2018), Barros é um dos nomes lembrados para voltar ao cargo numa reforma ministerial. Questionado, ele diz que “já fez sua parte” e “o problema não está na Saúde, está na Anvisa”. Mas o Progressistas cobiça retornar a algum ministério de primeira linha, caso da Saúde.

O líder do governo tem uma relação conflituosa com a agência desde que era ministro da Saúde. Em 2019, o Ministério Público Federal moveu ação contra Barros por causa de um contrato de cerca de R$ 20 milhões fechado na gestão dele, mas cujos medicamentos não foram entregues porque a Anvisa barrou a importação.

Desafio

O presidente da Anvisa desafiou o líder do governo a explicar quem o apoiava e como iria enquadrar a agência. “Ele está no dever de formalizar uma denúncia no canal competente ou se retratar. Acho que para ele não tem mais outra saída: Ou ele denuncia ou se retrata.”

Para ele, a frase de Barros “destoa” e é um “desserviço aos esforços nacionais de combate à pandemia”. “As pessoas estão com dificuldade de entender em quem confiar.” Segundo Barra Torres, a declaração deixou técnicos do órgão “indignados”. “Dizer que os servidores da agência estão ‘nem aí’ para a pandemia? Tivemos colegas nossos que morreram. São pessoas que estão trabalhando para salvar vidas.”

Nomeado no ano passado, após atuar interinamente no comando da agência, o contra-almirante da Marinha tem o perfil conservador que agrada a Bolsonaro. Ele afirma que “nem passa pela cabeça” entregar o cargo e não espera pressão do presidente após a fala de Barros. “Meu limite está muito longe ainda. Tenho 32 anos de treinamento militar.”

Fase 3

Barros manifestou a insatisfação em entrevista ao Estadão mesmo depois de a Anvisa flexibilizar a obrigatoriedade de os laboratórios apresentarem dados de estudos de fase 3 para obter o registro de vacinas – ele já havia protocolado um projeto de decreto legislativo para derrubar essa obrigatoriedade.

Para ele, a decisão colegiada da agência é uma “enganação”. Antes a fase 3 era obrigatória e agora passou a ser somente “preferencial”.

Segundo Barra Torres, a decisão foi técnica e não teve relação com a pressão do deputado. “Tiraram a fase três e colocaram mais dez gravetos no lugar. Querem enganar quem? Estão achando que sou trouxa?”, indagou o deputado nesta quinta-feira. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.