Algumas situações são tão especiais que conseguem vencer a barreira do tempo e se tornam perenemente atuais. Uma história ocorrida há mais de meio século deixou como legado uma importante lição em meio à quebra de valores que vemos hoje em dia, e faço questão de compartilhá-la nesta coluna.

Em 16 de novembro de 1969, o dia começou como muitos outros em Salvador (BA), ou seja, ensolarado e quente. Porém, aquele domingo tinha uma aura diferente no ar e a cidade aguardava ansiosamente o período da tarde, quando o estádio da Fonte Nova poderia ser o palco de um acontecimento especial naquele ano.

Outro marco global já tinha acontecido meses antes, em 20 de julho, quando Neil Armstrong entrou para a história como o primeiro homem a pisar na lua. De fato, o mundo parou para ver a realização daquele feito.

Naquela tarde que anunciava o verão na capital baiana, o mundo voltava seus olhos para assistir ao milésimo gol de Pelé. Eu já tinha ido a Recife e João Pessoa acompanhando a turnê do Santos, melhor time de futebol do mundo na época. Dava como certo que os quatro gols que faltavam para a marca emblemática seriam marcados naquela série de amistosos no Nordeste, mais precisamente, contra o Santa Cruz, no dia 12, na capital pernambucana, ou no confronto com o Botafogo da Paraíba, no dia 14. Porém, ele “só” fez três gols nos dois jogos. Nesse último, ele chegou a jogar como goleiro, pois a coisa estava fácil demais e suspeitou que qualquer bola que chutasse para o gol adversário teria a entrada “facilitada”. O Gilmar, goleiro titular do Santos, “casualmente”, ficou sem condições de permanecer em campo devido a “fortes dores abdominais”. O Rei foi para o gol e ainda defendeu uma bola quase impossível, com uma ponte maravilhosa, comprovando que não perdia a majestade independentemente da posição em campo.

O jogo seguinte seria contra o meu querido Esporte Clube Bahia e só faltava marcar mais um para o milésimo gol. Naquele domingo festivo, eu fui com meu pai ao estádio superlotado e pronto para a celebração. O milésimo gol não saiu, mas aquele dia foi inesquecível para mim. Naquela tarde aprendi uma lição edificante sobre ética e integridade.

Após os 35 minutos do segundo tempo, a partida entrava em sua reta final empatada, com o placar marcando um gol para cada time. A bola foi ao encontro dos pés do Rei. Com sua peculiar habilidade, Pelé driblou dois jogadores do Bahia, saiu do goleiro e chutou à meta. Todos se levantaram para ver melhor a bola rolando para o gol em um momento histórico. A pelota estava a um palmo da linha fatal quando, inacreditavelmente, apareceu o pé de um defensor do tricolor que impediu o gol. O salvador da meta baiana era o zagueiro central Nildo, que, às custas de grande esforço, conseguiu afastar o perigo para, em seguida, receber a maior vaia já ouvida na Fonte Nova até então, orquestrada por quase 100 mil pessoas, na maior parte torcedores do próprio Bahia.

Na hora, senti um estranho nó na garganta, que estava a ponto de explodir com o grito de gol. Ainda assim, imediatamente, decidi aplaudir o Nildo. Ele estava agindo corretamente, pois sua função era evitar gol do adversário, mesmo que fosse o badalado milésimo gol do Pelé. Nildo virou o anti-herói da disputa, mas tornou-se meu herói particular.

“Na hora da verdade, temos que fazer o certo para honrar nosso trabalho, mesmo correndo o risco de ser vaiado por 100 mil pessoas”. Essas foram as palavras do meu saudoso pai, com a voz embargada, naquele momento emocionante.

Nildo merecia ser parabenizado pelos torcedores. Em meio ao calor da situação, não refugou e, com grande coragem, valorizou ainda mais o gol que Pelé marcaria três dias depois, 19 de novembro, contra o Vasco da Gama, no Maracanã.

Mais de meio século depois, a atitude do Nildo serve de exemplo para todos, especialmente, na crise de valores que vivenciamos já há anos e parece cada vez mais aguda.

Esse caso também me fez acalentar o sonho de escrever, em coautoria com o jornalista esportivo Maurício Barros, um livro com lições do esporte para a liderança, que se tornou realidade em 23 de outubro do ano passado, dia do aniversário de Pelé, quando lançamos o “Descubra o Craque que Há em Você”.

Além do livro, levo o exemplo do Nildo para os programas de desenvolvimento de líderes que conduzo. Costumo projetar um trecho de vídeo que guardo como relíquia desse quase gol do Pelé. Logo em seguida, pergunto aos participantes: o que fariam naquelas circunstâncias se fossem o Nildo? Aproveito a oportunidade e formulo a mesma questão a você leitor: o que você faria?

  •   César Souza é cofundador e presidente do Grupo Empreenda, consultor e palestrante em Estratégia, Liderança, Clientividade e Inovação. Autor de “Seja o Líder que o Momento Exige” é também coautor do recém-lançado “Descubra o Craque que Há em Você” (Buzz,2020)