Chame de compensação histórica, de vantagem democrática ou, como definiu a filósofa americana Angela Davis “um movimento que altera toda a estrutura social”, as políticas de inclusão social, em especial de pretos, pardos e indígenas se proliferaram no mundo ao fim dos anos 1970, mas só foram regulamentadas no Brasil há dez anos. Em 2012, uma determinação instaurou a chamada Lei de Cotas, que garantia que 50% das vagas em institutos e universidades federais fossem destinadas a pessoas de baixa renda, com proporções de raciais condizentes com a população de cada estado. De lá para cá, muita coisa aconteceu. O Brasil passou de potência para incerteza mundial e a economia deu um voo de galinha. Agora, chegada a hora de o Congresso Nacional avaliar os resultados do que foi feito até aqui e ajustar seus caminhos futuros, parlamentares se dividem entre os de discursos rasos e os lacradores de plantão.

Mas é preciso encarar os fatos. Mais pessoas nas universidades significa mão de obra mais qualificada e remunerações melhores. Um estudo do Sindicato de Mantenedoras dos Estabelecimentos de Ensino Superior (Semesp) revelou que o diploma eleva em até 182% a renda mensal do cidadão, ou pelo menos deveria elevar.

Com a crise que começou em 2014 e se alonga até agora, boa parte da década da inclusão foi marcada por altos índices de desemprego, inflação alta e renda reduzida. Isso significa que correr para oferecer vagas sem dar ao aluno cotista condições de brigar em pé de igualdade no mercado de trabalho é secar gelo. E o resultado é visto dentro da universidade. A evasão entre os cotistas gira em torno de 28%, enquanto a média entre os não-cotistas é de 15%, segundo o IBGE. A evasão é maior quando o aluno é negro.

MUDANÇA Apesar de aplicar as cotas, universidades como a USP registram maior índice de evasão escolar entre aos cotistas, em especial os negros e as mulheres. (Crédito:Taba Benedicto)

Armado desse tipo de dado deputados conservadores explicam a ineficiência da política de cotas culpando o aluno, e não o sistema. A economista e consultora Ana Paula Debiazi, CEO da Leonora Ventures, afirma que análise precisa ter contexto social, já que ricos e pobres têm condições distintas de permanecer por quatro anos ou mais na mesma graduação. “As cotas existem porque há um problema no ensino básico”, disse. De fato, a cota está atrelada a uma defasagem do ensino público e talvez a revisão da atual política devesse escolher novas réguas e métricas.

NA PRÁTICA Na última década a Lei de Cotas ajudou a reduzir o abismo entre ricos e pobres, entre pretos e brancos, entre maiorias e minorias nos espaços acadêmicos. Em 2012, os egressos de escolas públicas nas instituições contempladas foram de 55% das vagas. Em 2016, chegaram a 63%. No grupo classificado como de pretos, pardos e indígenas, subiu de 27% para 38% no mesmo período. A economista Fernanda Estevan, da Fundação Getulio Vargas (FGV), entende que o principal resultado da política foi redefinir o perfil das universidades e gerar grande impacto na vida social de muitos cotistas. Pelas contas do IBGE, entre 2010 e 2019 houve aumento de quase 400% no número de alunos pretos e pardos nas instituições de ensino superior no Brasil, algo que quando as cotas eram apenas voltadas para questões de renda não acontecia.

PROTESTOS Na praça dos Três Poderes, alunos pedem que a política de cotas seja mais atenta ao perfil da juventude preta brasileira. (Crédito:Dida Sampaio )

Para o economista João Beck, sócio da consultoria BRA, a diversidade que ocorre dentro do ambiente universitário transborda para o ambiente corporativo. “As ações afirmativas são carregadas de medo e preconceito. Mas conforme aparecem os resultados positivos, a aceitação do público melhora”, disse. Mas se a estatística não mente, é preciso olhar como esses diplomas são recebidos no mercado de trabalho. Em 2021, segundo o IBGE, pessoas pretas, pardas ou indígenas com curso superior ganharam, em média, 31% menos que os brancos. A redução chega a 36% quando recortada só as mulheres.

54% da população tem a pele preta ou parda mas, diz o IBGE, os brancos têm o dobro de chances de obter um bom emprego

No meio desses desafios, nossos deputados e senadores deveriam estar fazendo audiência pública e avaliando o que deu e o que não deu certo na última década. Mas esse assunto, em ano eleitoral, não parece apetecer ninguém. Para a coordenadora do Programa Mestre em Diversidade Inclusiva (MDI), Samanta Lopes, enquanto tratarmos a educação como gasto, será difícil sentir avanços. “Ainda há um longo caminho”, afirmou. Longo como o que percorreu a gigante escritora brasileira Carolina de Jesus, em O Quarto do Despejo. “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida/ Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida. / Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora.”