29/07/2022 - 4:30
Chame de compensação histórica, de vantagem democrática ou, como definiu a filósofa americana Angela Davis “um movimento que altera toda a estrutura social”, as políticas de inclusão social, em especial de pretos, pardos e indígenas se proliferaram no mundo ao fim dos anos 1970, mas só foram regulamentadas no Brasil há dez anos. Em 2012, uma determinação instaurou a chamada Lei de Cotas, que garantia que 50% das vagas em institutos e universidades federais fossem destinadas a pessoas de baixa renda, com proporções de raciais condizentes com a população de cada estado. De lá para cá, muita coisa aconteceu. O Brasil passou de potência para incerteza mundial e a economia deu um voo de galinha. Agora, chegada a hora de o Congresso Nacional avaliar os resultados do que foi feito até aqui e ajustar seus caminhos futuros, parlamentares se dividem entre os de discursos rasos e os lacradores de plantão.
Mas é preciso encarar os fatos. Mais pessoas nas universidades significa mão de obra mais qualificada e remunerações melhores. Um estudo do Sindicato de Mantenedoras dos Estabelecimentos de Ensino Superior (Semesp) revelou que o diploma eleva em até 182% a renda mensal do cidadão, ou pelo menos deveria elevar.
Com a crise que começou em 2014 e se alonga até agora, boa parte da década da inclusão foi marcada por altos índices de desemprego, inflação alta e renda reduzida. Isso significa que correr para oferecer vagas sem dar ao aluno cotista condições de brigar em pé de igualdade no mercado de trabalho é secar gelo. E o resultado é visto dentro da universidade. A evasão entre os cotistas gira em torno de 28%, enquanto a média entre os não-cotistas é de 15%, segundo o IBGE. A evasão é maior quando o aluno é negro.
Armado desse tipo de dado deputados conservadores explicam a ineficiência da política de cotas culpando o aluno, e não o sistema. A economista e consultora Ana Paula Debiazi, CEO da Leonora Ventures, afirma que análise precisa ter contexto social, já que ricos e pobres têm condições distintas de permanecer por quatro anos ou mais na mesma graduação. “As cotas existem porque há um problema no ensino básico”, disse. De fato, a cota está atrelada a uma defasagem do ensino público e talvez a revisão da atual política devesse escolher novas réguas e métricas.
NA PRÁTICA Na última década a Lei de Cotas ajudou a reduzir o abismo entre ricos e pobres, entre pretos e brancos, entre maiorias e minorias nos espaços acadêmicos. Em 2012, os egressos de escolas públicas nas instituições contempladas foram de 55% das vagas. Em 2016, chegaram a 63%. No grupo classificado como de pretos, pardos e indígenas, subiu de 27% para 38% no mesmo período. A economista Fernanda Estevan, da Fundação Getulio Vargas (FGV), entende que o principal resultado da política foi redefinir o perfil das universidades e gerar grande impacto na vida social de muitos cotistas. Pelas contas do IBGE, entre 2010 e 2019 houve aumento de quase 400% no número de alunos pretos e pardos nas instituições de ensino superior no Brasil, algo que quando as cotas eram apenas voltadas para questões de renda não acontecia.
Para o economista João Beck, sócio da consultoria BRA, a diversidade que ocorre dentro do ambiente universitário transborda para o ambiente corporativo. “As ações afirmativas são carregadas de medo e preconceito. Mas conforme aparecem os resultados positivos, a aceitação do público melhora”, disse. Mas se a estatística não mente, é preciso olhar como esses diplomas são recebidos no mercado de trabalho. Em 2021, segundo o IBGE, pessoas pretas, pardas ou indígenas com curso superior ganharam, em média, 31% menos que os brancos. A redução chega a 36% quando recortada só as mulheres.
54% da população tem a pele preta ou parda mas, diz o IBGE, os brancos têm o dobro de chances de obter um bom emprego
No meio desses desafios, nossos deputados e senadores deveriam estar fazendo audiência pública e avaliando o que deu e o que não deu certo na última década. Mas esse assunto, em ano eleitoral, não parece apetecer ninguém. Para a coordenadora do Programa Mestre em Diversidade Inclusiva (MDI), Samanta Lopes, enquanto tratarmos a educação como gasto, será difícil sentir avanços. “Ainda há um longo caminho”, afirmou. Longo como o que percorreu a gigante escritora brasileira Carolina de Jesus, em O Quarto do Despejo. “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida/ Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida. / Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora.”