Entre um pouso e uma decolagem, seja de uma rota doméstica ou internacional, as companhias aéreas brasileiras seguem atentas às estatísticas do mercado nacional: número de voos, quantidade de passageiros e até cotação do dólar. A expectativa é pela retomada em definitivo do setor, um dos mais afetados pela pandemia. O maior desafio, no entanto, é não saber quando e como acontecerá. A incerteza prolongada e a apreensão natural foram reveladas à DINHEIRO por Jerome Cadier, CEO da Latam Airlines Brasil. Depois de uma queda superior a 95% nas operações (nacionais e internacionais) no início da crise sanitária, a companhia constatou crescimento gradual a partir do segundo semestre. Em dezembro, a demanda chegou a 80% nos destinos nacionais, mas despencou com a velocidade de um jato para cerca de 25% em março deste ano, já em meio à segunda onda da Covid-19 pelo País. “Agora (maio), estamos próximos dos 50% e com a previsão de colocar mais voos. Esperamos que a vacinação continue e que não ocorra uma terceira onda.”

O otimismo contido do executivo está diretamente relacionado à incerteza quanto aos rumos da crise sanitária. A atenção maior está nas rotas ao exterior pelo fato de a Latam “ser uma companhia majoritariamente internacional”. No período pré-pandemia, a empresa atendia 26 países, com média de 80 voos diários. Com a chegada do vírus, em março do ano passado, todos chegaram a ser suspensos temporariamente devido às restrições de circulação, aliadas à queda contínua na demanda. Desde então, o índice de recuperação não chegou a 20%. “Tivemos 5%, 7%, 12% de alta. No máximo, 18%. Na sequência, esse número voltou ao patamar inferior a 10%”, afirmou. O motivo? “Os países se fecharam em relação ao Brasil”. A empresa atende, no momento, apenas dez destinos internacionais, com média de dez voos diários. Já as rotas domésticas são 44, média de 260 voos por dia, contra 700 antes da crise sanitária.

TECNOLOGIA E SEGURANÇA Equipamentos de autoatendimento foram instalados pela Latam nas áreas dos aeroportos para agilizar o processo de embarque e reduzir o contato entre passageiros e funcionários. (Crédito:Mauro Pimentel)

O ritmo de imunização no Brasil tem sido a grande incógnita para o setor. Até a quarta-feira (19), 19% da população, ou 40,3 milhões de pessoas, haviam recebido ao menos uma dose da vacina. Para complicar a situação das empresas aéreas, nem mesmo o resultado do exame de PCR, um dos mais eficazes no diagnóstico da Covid-19, tem sido aceito para a entrada direta de turistas brasileiros nos Estados Unidos, destino mais procurado pelos viajantes daqui. O cidadão precisa fazer uma parada no México ou em outra nação aprovada pelos americanos antes de seguir viagem. “Ainda estamos otimistas que esse número vá subir à medida que o País tomar o controle da vacinação e não tivermos essa percepção de perigo de você se aproximar do Brasil e do brasileiro.” E se tiver uma terceira onda? “Aí teremos de começar tudo de novo.”

VACINAÇÃO Apesar do receio demonstrado por Cadier quanto ao futuro da pandemia, o especialista Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), acredita que a leve recuperação apresentada pelo mercado brasileiro em maio, com média diária de pouco mais de 1 mil partidas — contra 854 em abril —, é reflexo positivo da vacinação. “É importante lembrar, porém, que o severo impacto da pandemia na aviação ainda faz com que seja necessária a manutenção de medidas emergenciais para que possamos retomar a operação aérea de forma sustentável ao longo do tempo”, disse.

Não bastassem as questões relacionadas à saúde, a Latam sofre as consequências da desvalorização do real frente ao dólar no último ano (cerca de 40%). A empresa tem 60% das operações atreladas à moeda americana, principalmente para a aquisição de combustível de aviação e para o pagamento de taxas aeroportuárias e do leasing das aeronaves. “Não vou falar que é uma tempestade perfeita, porque alguma coisa ruim ainda pode acontecer. Realmente é uma conjunção de fatores muito complexa”, disse Cadier. “Quando o dólar bate R$ 5,70 ou R$ 5,80, há uma preocupação muito grande, porque tudo fica caro. E o passageiro já pagou aquela passagem em real. Então, você tem um descasamento. Você vende em real e de repente o dólar vai subindo.”

As companhias têm sido obrigadas também a lidar com a queda na arrecadação proveniente do passageiro corporativo, que respondia por 60% a 70% do faturamento da Latam. Em um voo qualquer da empresa em período pré-pandemia, 30% dos clientes viajavam a negócio e 70%, a turismo. Na hora de fazer as contas, no entanto, a receita proveniente de empresas correspondia a mais da metade do voo. “Toda a margem da companhia aérea no Brasil vinha do passageiro corporativo”, afirmou o executivo, que acredita no retorno deste perfil de consumidor no pós-pandemia, mas em menor escala. “Vai cair de 30% para 15%, 10%, não sei. Sei apenas que vai ter uma redução. Não tenho dúvida.”

Com a queda no número de voos, a companhia teve de se adaptar para ganhar eficiência. E de duas maneiras. A primeira delas foi a redução da estrutura, o que envolveu, por exemplo, a devolução de aviões. Antes da pandemia, a Latam Brasil operava com 160 aeronaves, tanto nas rotas domésticas quanto nas internacionais. A empresa já devolveu 15 equipamentos e admitiu entregar outros dez, mas ainda não o fez. “Acho que o crescimento está voltando. Também não adianta devolver tudo e daqui a seis meses puxar aviões de volta. Tenho que dosar isso para não ficar com pouca capacidade lá na frente”, disse o CEO, ao lembrar que a companhia também precisa ser mais flexível. “Tanto na aceleração quanto na desaceleração. Talvez você precise não apenas ser menor, mas tenha de voltar a crescer rápido. As empresas aéreas sempre se programaram em longo prazo. Acho que não estávamos prontos para um cenário que nem esse.”

DEMISSÕES A redução da estrutura culminou no corte de pessoal. Em meados de 2020, a empresa chegou a apresentar ao Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) uma proposta de redução permanente de salários dos tripulantes, que não foi aceita. Diante da recusa, demitiu 2,7 mil de um total de 7 mil tripulantes. Já no início deste ano, a Latam entregou à SNA outra proposta de redução de salário a pilotos e comissários, desta vez temporária e também recusada. “No começo da crise, as empresas sentaram para discutir a redução temporária de salário dos tripulantes. O acordo foi fechado com a Azul e a Gol, que economizaram 50% em remunerações em 2020”, disse Ondino Dutra, presidente da SNA.

Em continuidade ao processo de diminuição da estrutura, a Latam realiza neste mês a terceirização da operação de ground handling (rampa, limpeza e gestão de equipamentos de solo) em praticamente todos os aeroportos do País, exceção a Congonhas (São Paulo), Santos Dumont (Rio de Janeiro) e Brasília. A mudança resultará na saída de 1,5 mil funcionários. Segundo Cadier, não estão previstas outras movimentações em relação aos colaboradores. “Pelo contrário. Enxugamos o quadro, mas já imaginando que em algum momento voltaremos a contratar em outras funções.”

ENTRE O CÉU E A TERRA Empresas aéreas veem o aumento gradual dos voos em maio e não trabalham com a hipótese de uma terceira onda da Covid-19 no País. (Crédito:Moacyr Lopes Junior)

A estratégia do Grupo Latam busca evitar novas turbulências durante a pandemia. Em meados de 2020, a companhia entrou com pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos, por causa de dívidas de quase US$ 18 bilhões. E os esforços para equilibrar as contas parecem surtir efeito. O grupo encerrou o primeiro trimestre de 2021 com US$ 2,6 bilhões de liquidez disponível. As despesas operacionais caíram 43,8% no período. O prejuízo líquido, no entanto, foi de US$ 431 milhões. “Um ano após o início da pandemia e com o processo de vacinação em andamento, o profundo impacto da crise permanece. Encerramos um primeiro trimestre muito difícil com níveis saudáveis de liquidez e uma redução significativa de custos”, disse Roberto Alvo, CEO do Grupo Latam Airlines. “A chamada à ação é continuar trabalhando, porque a pandemia e seu impacto ainda não acabaram.”

No Brasil, Cadier vê como acertada a decisão do Grupo Latam, inclusive da subsidiária brasileira, de recorrer à Justiça americana diante da gravidade da crise. O Chapter 11 (Capítulo 11, equivalente americano à recuperação judicial brasileira) permitiu que a empresa paralisasse as dívidas passadas, que serão discutidas futuramente, e continuasse operando, com acesso a financiamento. Diante da difícil situação, o grupo financiou US$ 2,4 bilhões. “Diria que metade disso corresponde à parcela brasileira, porque o Brasil é aproximadamente metade da Latam”, afirmou o CEO. “Isso nos dá tranquilidade para operar na pandemia.” A ideia da Latam é seguir o cronograma para sair do Chapter 11 no final deste ano. “Mas é óbvio que ainda tem muita coisa para acontecer na Corte.”

AGILIDADE O advogado Thiago Carvalho, especialista em aviação civil e sócio da ASBZ Advogados, destaca a agilidade da Latam ao pedir o Chapter 11, sem esperar uma deterioração irreversível da situação financeira. No entanto, vê com pouco otimismo a saída já no segundo semestre deste ano. “Tanto pela lenta e imprevisível retomada das operações aéreas com regularidade, como pelo pedido de extensão do prazo para apresentação do plano de recuperação, deferido pela Corte americana para até 30 de junho.”

Membro da comissão de direito aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, Carvalho classificou como inevitável a redução de custos, que culminou no corte de funcionários, diante da redução extrema da operação e das receitas. “No que pese haver alguma expectativa de início da retomada paulatina do movimento doméstico a partir do terceiro trimestre deste ano, o movimento internacional ainda é imprevisível.”

Para o especialista, independentemente da retomada, a pandemia acelerou a adoção de interfaces mais tecnológicas. No caso da Latam, houve a ampliação da gama de serviços com o lançamento de uma plataforma para tornar a jornada do cliente mais simples. O sistema permite ao consumidor personalizar a viagem e, principalmente, economizar tempo. O check-in automático já substitui o check-in presencial ou on-line nos voos domésticos. E, para proporcionar uma experiência sem contato entre passageiros e funcionários, a companhia repaginou o setor de atendimento nos aeroportos. A medida favorece a etiquetagem e o despacho autônomo da bagagem por meio de totens de autoatendimento. Pequenas iniciativas que visam levar novamente a gigante Latam a voos mais altos.

ENDIVIDADA, ITA ENTRA NA BRIGA POR MERCADO

Divulgação

O mercado doméstico brasileiro mostra disputa acirrada pela liderança mesmo em meio à pandemia. Depois de ver as duas principais concorrentes se alternarem no topo do ranking nos últimos anos, a Azul assumiu pela primeira vez o posto mais alto, no último trimestre, com 37,8% de participação, seguida por Gol (32,9%) e Latam (28%). E a briga deve ganhar emoção a partir de junho com o início das operações da Itapemirim Transportes Aéreos (ITA), empresa pertence ao grupo Itapemirim. Apesar de dívidas de aproximadamente R$ 2,3 bilhões, a companhia pode se beneficiar da integração entre modais. “Isso permitirá capilaridade para atender locais onde inexistem aeroportos”, disse Thiago Carvalho, especialista em aviação civil e sócio da ASBZ Advogados. “A saída da Avianca (teve a falência decretada) do mercado prejudicou a competitividade.”

Carvalho revela um misto de esperança e de desconfiança em relação à nova companhia, que enfrenta processo de recuperação judicial desde 2016. “Para o consumidor, a situação financeira da ITA é quase irrelevante. O passageiro foca no preço, nas rotas, na adequação do serviço oferecido às suas necessidades”, afirmou. “Já para o mercado e potenciais investidores, esse é um ponto que precisa ser mais bem trabalhado.”

O grupo Itapemirim anunciou recentemente que, por causa da pandemia, sofreu redução na ordem de 50% de suas receitas em 2020 e tem se mantido por meio da venda pontual de bens imóveis. No caso da empresa aérea, o investimento principal, de US$ 500 milhões, será proveniente de dois fundos do Catar – os nomes não foram revelados por causa de acordo de confidencialidade –, segundo Sidnei Piva, presidente do Grupo Itapemirim.

O voo inaugural está programado para 29 de junho, entre Guarulhos e Brasília. A operação comercial começará no dia seguinte, inicialmente com partidas e chegadas em São Paulo (Guarulhos), Rio (Galeão-Tom Jobim), Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Porto Seguro, Curitiba e Porto Alegre. A frota será composta inicialmente por cinco Airbus A320.

ENTREVISTA: Jerome Cadier, CEO da Latam Brasil
O cronograma de vacinação precisa ser cumprido

Claudio Gatti

O mercado está preparado para uma possível terceira onda da Covid-19?
Se acontecer, vamos regredir no processo de retomada. A terceira onda assusta todo mundo, a exemplo do que ocorreu na segunda. As pessoas param de viajar, as restrições aumentam. Hoje, sinto que a probabilidade de ocorrer é pequena. Mas desde que o governo disponibilize as vacinas que se comprometeu. Preocupa quando vemos a falta do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) para continuar fazendo a distribuição da Coronavac. Isso aumenta probabilidade de termos uma nova onda da doença. O jogo ainda não está ganho. Longe disso. O cronograma proposto pelo governo atende para que não tenhamos uma terceira onda, mas precisa ser cumprido.

Quais os principais desafios para a Latam e para o mercado de aviação nacional?
Um deles é encontrar caminhos para operar com custo mais baixo. E isso é necessário para a Latam, assim como para a Gol e para a Azul. É preciso também para o passageiro brasileiro, que espera por tarifas mais baixas. E para isso precisamos de um custo operacional mais baixo. Não envolve só carga tributária. Envolve também taxas de navegação e, por exemplo, custos de aeroportos mais baixos. Isso é um desafio da Latam e do setor para que a gente voe mais. Antes da pandemia, a gente tinha 110 milhões de passageiros por ano no Brasil. Para 220 milhões de habitantes. É muito pouco. No Chile são duas vezes mais proporcionalmente à população. Nos Estados Unidos, então, são cinco vezes mais. Voa-se muito pouco aqui no Brasil.

É sabido que alta carga tributária no País tem forte impacto no preço final dos produtos e serviços. Há algum aceno de redução do governo que possa favorecer o setor?
De forma bastante tímida. Um ano antes da pandemia, o governo de São Paulo reduziu pela metade o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) cobrado no combustível de aviação. Nenhum país no qual a gente e os nossos parceiros operam cobram um imposto estadual sobre o combustível de aviação. Só no Brasil. E São Paulo cobrava 25% em cima de um insumo que é o principal custo da companhia aérea. Quase 30% do nosso custo é com combustível.

Qual a saída?
É necessário reduzir o ICMS e fazer com que o preço cobrado pelo combustível seja comparável a um valor que eu possa importá-lo. Para abrir a concorrência entre empresas. É uma medida que vai fazer o custo da aviação cair. Mas acho que é difícil o governo abrir mão dessa arrecadação.

O governo federal tem sido muito criticado por causa da atuação na condução da pandemia. Na sua visão, as críticas são justas?
No caso da vacinação é necessário entender por que estamos nesta situação. Não sei se o caminho ideal é a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). O que acho fundamental agora é que qualquer que seja esse esforço, que ele não desvie a atenção do principal tema: a vacinação. Olhando para frente, a curva é positiva. Vamos vacinar, a economia vai voltar, e lidaremos com as dificuldades que eventualmente iremos herdar da pandemia. Mas estou mais otimista hoje em relação ao que vem pela frente e menos preocupado em esmiuçar o passado. Quero que a gente vacine muito.