Rio de Janeiro - Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte, durante audiência sobre a Casa da Morte feita pela Comissão Nacional da Verdade, no Arquivo Nacional (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Rio de Janeiro – Inês Etienne Romeu, ex-presa política, durante audiência sobre a Casa da Morte feita pela Comissão Nacional da Verdade, no Arquivo Nacional Tânia Rêgo/Arquivo Agência Brasil

A Justiça Federal em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, rejeitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra Antonio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão, pelo estupro da ex-presa política Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da unidade clandestina de tortura da ditadura militar conhecida como Casa da Morte. Inês morreu há dois anos.

O processo é de 2016 e a decisão foi publicada ontem (8). Na justificativa, o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho cita a Lei nº 6.683/1979 (Lei da Anistia, para “crimes políticos ou conexo com estes” entre 1961 e 1979) e um decreto de 1895, afirmando que anistia, uma vez concedida, é irrevogável e assumida como direito adquirido. “O denunciado é acusado de ter cometido, entre 01/06/1971 a 20/07/1971, crimes relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”, diz o juiz na decisão.

O magistrado argumenta que desrespeitar a anistia “ofende a dignidade humana” e que o crime estaria prescrito, portanto, estaria com a punibilidade duplamente extinta. Ele ressalta que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” e que, no caso, a denúncia faz o oposto, retroagindo para “prejudicar o acusado”.

Coelho diz ainda que não há provas documentais dos fatos, apenas reportagens, entrevistas, “sentenças proferidas por tribunais de organismos estrangeiros” e que a depoente prestou queixa apenas 8 anos após o ocorrido.

Por fim, o juiz argumenta que Inês foi condenada na época da ditadura e cita o filósofo de discurso conservador Olavo de Carvalho. “Ninguém é contra os 'direitos humanos', desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.

Pelas redes sociais, um dos autores da denúncia, o procurador da República no Rio de Janeiro Sérgio Suiama, classificou a decisão como “o terceiro estupro de Inês Etienne Romeu”, destacando que a “lamentável sentença” foi publicada no Dia Internacional da Mulher e que o estupro dela não foi investigado até 2013.

“Graças à ordem judicial de busca e apreensão, pedida e cumprida pelo MPF na casa do coronel já falecido Paulo Malhães, foi possível, após quase três anos de investigações, descobrir a verdadeira identidade de 'Camarão', o militar Antonio Waneir Pinheiro Lima”.

Suiama sustenta que “a decisão judicial ignora ou desqualifica todas as provas obtidas”, inclusive a palavra da vítima, “dizendo que o fato só foi relatado após 8 anos do ocorrido, como se fosse possível à vítima ir a uma delegacia de polícia em 1971 registrar queixa contra os militares que a violentaram e torturaram”.

“A única certeza do magistrado volta-se contra a vítima, por ele qualificada como uma terrorista perigosa, condenada pela Justiça Militar da ditadura a 10 anos de prisão por sequestro seguido de morte”. Sobre a citação de Olavo de Carvalho, o procurador diz que “como se trata de uma ação penal por crime de estupro, imagina-se que a 'vantagem' à 'minoria selecionada' seja o direito de todas as mulheres de não sofrerem violência sexual”.

Segundo Suiama, o MPF vai recorrer da sentença.

Nota pública

A Câmara Criminal do Ministério Público Federal também se pronunciou sobre a sentença. Em nota, o órgão lembrou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já afastou o argumento de anistia e prescrição para esse tipo de crime.

“O Ministério Público Federal, por intermédio de sua Câmara de Coordenação e Revisão em Matéria Criminal, lamenta veemente tal concepção, pois nenhuma mulher, ainda que presa ou condenada, merece ser estuprada, torturada ou morta. E tampouco pode o sistema de justiça negar desta maneira a proteção da lei contra ato qualificado no direito internacional como delito de lesa-humanidade”.

Segundo a nota, o MPF aguarda que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região “reforme a decisão teratológica, permitindo que os fatos denunciados sejam devidamente provados no âmbito de um devido processo legal, sempre negado aos que se opuseram ao regime ditatorial”.

A nota é assinada pela coordenadora da Câmara Criminal, subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.