Lula e Dilma Rousseff decidiram assinar uma carta emitida domingo (12) atacando a decisão da justiça inglesa, de dois dias antes, que abre caminho à extradição para os Estados Unidos de Julian Assange, o australiano fundador do WikiLeaks. Muitos acreditam que ter o nome de Lula num papel já é motivo para se posicionar do outro lado. Nada mais ingênuo. Nada mais distante de uma visão liberal. E nada mais distante da discussão necessária sobre o poder da sociedade digital em que vivemos. Antes de decidir ser contra ou a favor em relação à decisão judicial britânica é preciso entender quem é Assange e o que ele fez de tão grave para dar start a um ódio mortal por parte do governo americano, iniciado ainda sob a batuta do Nobel da Paz Barack Obama.

Em 2006, junto de outros colaboradores ciberativistas, Assange liderou o lançamento do WikiLeaks. A plataforma se define como uma organização “especializada na análise e publicação de grandes conjuntos de dados oficiais censurados ou restritos envolvendo guerra, espionagem e corrupção”.

E foi por isso que ele caiu.

Queda que começou com um furo espetacular. Em abril de 2010, o WikiLeaks lançou um hotsite — Collateral Murder (https://collateralmurder.wikileaks.org/). Divulgou gravações de uma operação americana na periferia de Bagdá ocorrida três anos antes. Na ação, dois helicópteros militares metralham um grupo suspeito. Os pilotos conversam pedindo autorização para abrir fogo. Abrem. Tiros de fuzil acertam todos em solo. Uma van aparece para salvar um dos feridos, que rastejava. Os militares novamente pedem autorização para continuar com os tiros. “C’mon”, grita um deles por rádio, impaciente para disparar. Sinal verde. A matança prossegue, desta vez atingindo também quem estava na van. Minutos depois, uma equipe americana de solo chega ao local do tiroteio.

E percebe o erro.

Na van havia duas crianças a caminho da escola. Feridas, foram resgatadas pelos militares. Um oficial americano, no entanto, ordena a seus homens que elas não sejam levadas a um hospital militar, mas deixadas numa delegacia iraquiana — a chance de sobrevivência cairia. A chance de ter testemunhas também. O assunto poderia ser ignorado caso não houvesse entre os mortos dois jornalistas da Agência Reuters. Um fotógrafo de 22 anos, Namir Noor-Eldeen. Um produtor e assistente de 40 anos, Saeed Chmagh.Quando o ataque ocorreu, em julho de 2007, a Reuters solicitou as imagens por meio de leis de acesso à informação. Foi ignorada.

Não fosse o vazamento do WikiLeaks… A retaliação veio. Orquestrada transnacionalmente. Uma acusação de estupro contra Assange originou por parte da Suécia uma ordem internacional para sua prisão em novembro daqueler ano (2010). Assange se entregou um mês depois no Reino Unido, para não ser extraditado para os Estados Unidos — que pretendem acusá-lo por espionagem. Temendo que a justiça inglesa cedesse, em agosto de 2012 ele pediu asilo na embaixada do Equador em Londres. Ficou sete anos vivendo ali. Em 2019, o Equador revogou o asilo e Assange foi imediatamente preso na Inglaterra, com acusações legalmente débeis, para não dizer manipuladas. As de estupro já haviam sido arquivadas.

Na sociedade atual, violação de privacidade e distribuição de notícias alcançaram esferas sem precedentes. E isso incomoda o mais absolutista de todos os poderes: o Estado. Não é à toa que governos de todo o mundo brigam, com e sem razão, contra as gigantes bigtechs. Vale para EUA, Rússia, China e até o Brasil. Todos querem o controle de um espaço que nasceu sem controle. Não é de graça que bilionários da tecnologia como Jeff Bezos e Pierre Omidyar colocaram parte de suas fortunas em empresas de mídia.

Depois do que aconteceu com Assange, para evitar perseguições individuais e o estrangulamento dessas plataformas, elas passaram a operar em forma de consórcios de empresas de mídia. Centenas de grupo em todo o mundo recebem os documentos e todos publicam como querem — Panama Papers, em 2016, foi assim. Chegou inicialmente a um veículo alemão e a uma associação de jornalistas. Logo, estavam compartilhados com quatro centenas de profissionais de imprensa de todo o planeta. É uma maneira de pulverizar e ao mesmo tempo aumentar o poder de divulgação, minimizando a chance de sufocamento.

Atuo como jornalista há 35 anos. Sou formado nisso há 34 anos. Dou aulas sobre isso há 24 anos. Não sou isento neste texto. Como em toda profissão há gente bacana e excelente e há os que não. Sempre lembro: Benito Mussolini foi jornalista. Mas poucos espaços conseguem vigiar de forma tão eficaz o poder e os poderosos. É esse o papel. De certa forma, esse é também o preço que Assange paga: ele enfrentou o Estado. E independentemente do que pensa politicamente, fez o que deveria ser feito. É igualmente o que todo liberal deve fazer quando o Estado se comporta fora das leis.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.