Conheci JK por seu método predileto de agir ? ligeiro e certo. Eu era presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto da PUC, em São Paulo, e Jânio Quadros havia apenas iniciado seu curto reinado. JK angustiava-se, em Lisboa, diante dos ataques pessoais que lhe eram dirigidos por Jânio, que recusara receber de suas mãos a faixa presidencial e que fizera, em sua posse, uma catilinária contra JK ? que a escutara pelo rádio do avião da Pan Air que o levou de Brasília a Portugal.

Escrevi-lhe uma carta convidando-o a fazer uma palestra no Centro Acadêmico. Respondeu-me de imediato, aceitando. Encontro marcado no Rio, quando voltasse, meses depois. Lá fui eu, e perdi-me em uma recepção com milhares de pessoas no Hotel Glória. Consegui furar o cerco, falar-lhe e ele de pronto pediu-me para no dia seguinte visitá-lo em sua casa.

Ligeiro e certo ? em junho, veio a São Paulo. Viajei com ele no velho Convair da Vasp. Vinha preocupado em uma sexta-feira, com a recepção popular em São Paulo, feudo eleitoral de Jânio. Disse-lhe que no centro acadêmico teria muito êxito. Mas jamais esperara o que aconteceu. Programei uma solene missa na catedral oficiada pelo cardeal Dom Carlos Mota, no sábado. Igreja lotada. À saída, após despedir-se de todos, JK encaminhou-se para o carro que o levaria para um almoço íntimo em minha casa. A surpresa: mais de três mil pessoas o esperavam à porta. Um frenesi intenso quando apareceu. E tomado nos ombros da multidão foi carregado até o Jockey Club, lágrimas nos olhos.

Era o reconhecimento paulista a quem mudara a fisionomia do empresariado, do trabalhador, do povo e da democracia no País. Sua imagem, ao ser carregado, estampada nos jornais do Brasil inteiro enviou a mensagem clara aos governantes da época: Democracia e Desenvolvimento, aspirações nacionais. Certamente esta foto ajudou a evitar a invasão das Guianas, que nos proporcionaria, em guerra contra a Holanda, França e Inglaterra, o fiasco e a vergonha mundiais. Mas não ajudou, ou antes apressou o impasse entre o Congresso e o Executivo que terminou na renúncia pouco explicada de Jânio.

Da sua vinda a São Paulo, em 1961 até 1964, época de sua cassação, trabalhamos juntos e muito próximos. Posso dizer que fui considerado um amigo da família. Conheci por inteiro o homem, o pai, o chefe de família e o estadista. Sua visão do País totalmente integrado e unido por estradas, com os brasileiros tomando posse de seis milhões de quilômetros quadrados absolutamente abandonados, nos deu Brasília e a integração territorial que nos faltava. Sua Operação Pan-Americana foi e é a base política de uma verdadeira integração continental, de que ele é arauto e incentivador. Ações precursoras que mostraram sua visão mundial.

Garnero
Lembro, certa noite, andando nós dois pela avenida Vieira Souto, no Rio ? pouco antes, o presidente Kennedy fizera seu discurso anunciando o bloqueio de Cuba ? ter ouvido dele: ?Não haverá guerra mundial. A União Soviética não produz aço e energia em volumes necessários para enfrentar os Estados Unidos. Para o Brasil é importante não haver o conflito. Mas só nos importa, ideologicamente, desenvolver o País, pois só assim seremos ouvidos no mundo?. Vemos hoje que só o progresso garante uma voz forte no concerto das nações.

JK foi o pé-de-valsa que deu força à nossa cultura musical e à nossa capacidade de compreendermo-nos uns aos outros. Foi o peixe vivo de um País que até 1955 esteve sempre ?deitado eternamente em berço esplêndido?, sem ânimo ou confiança para acordar e lutar.

Seu grande legado não foram as obras. Ao permanecer até hoje como o presidente mais querido da história do Brasil, sua grande lição foi a de fazer os brasileiros aprenderem a ver o quão grande é a sua pátria, o quanto eles podem fazer por si mesmos, quanta energia podem galvanizar quando motivados.

Ele morreu triste. Encontrei-o em São Paulo, na noite anterior a sua morte. Disse-me que ia a Brasília no domingo, e eu o convidei para ir comigo em nosso avião. Disse-me que telefonaria para confirmar. Ligou-me e disse que iria para o Rio de automóvel com seu motorista de confiança, o Geraldo. Encontrar-se-ia comigo em Brasília na segunda-feira.

Soube da notícia de sua morte às duas horas da manhã de segunda-feira. Morreu com o número de meu telefone em seu bolso. Fui aos velórios no Rio e em Brasília. Vi povo, povo e nada mais que povo. Os amigos, com raras exceções, não estavam disponíveis. Politicamente, não era um bom momento para se morrer.

Neste seu centenário não podia deixar de trazer uma pequena nota de admiração por seu destemor, sua persistência, sua visão e seu profundo sentido de reconciliação e de perdão, sua coragem de ambição sem egoísmo, sua fé democrática. Que o novo presidente do Brasil saiba não apenas louvá-lo mas praticar seu catecismo.