O martelo do leiloeiro James Lisboa, um dos mais respeitados do País, nunca bateu tanto como nos últimos dois meses. Habituado a leiloar obras com lances iniciais de até R$ 1,28 milhão, como é o caso da tela Paisagem, de Portinari, Lisboa realiza em média cinco pregões por ano, cada um deles movimentando cerca de R$ 3,5 milhões. Este ano, já foram quatro leilões. “O negócio deu uma bela aquecida”, afirmou, antes de revelar os números registrados por seu escritório, em São Paulo, desde o início do isolamento social decorrente da Covid-19. Se antes da pandemia ele vendia em média 65% das peças por leilão, agora seus clientes estão arrematando quase todo o acervo a cada evento – todos realizados no ambiente virtual.

Durante o pregão conduzido por Lisboa pela internet no dia 11 deste mês, 84% das obras listadas encontraram comprador. No dia seguinte, o total vendido subiu para 97% (102 em 105 peças). “Algo assim não acontece todo dia”, disse, com o conhecimento de quem tem 42 anos de experiência no setor. Um detalhe: todas as obras foram vendidas a preços acima do lance. Não raro, muito acima. Foi o que aconteceu com uma gravura de Tarsila do Amaral, que iniciou o leilão a R$ 5 mil e foi comprada por R$ 41 mil, alta superior a oito vezes.

O caso do leiloeiro James Lisboa não é único no universo das artes. Muitas galerias do País têm registrado alta nas vendas nesse período de pandemia. Não que a crise do coronavírus tenha passado longe do segmento. Mais de 150 galerias nos Estados Unidos divulgaram perdas superiores a 70% na receita do segundo trimestre deste ano, na comparação com 2019. Na Europa, os números do período ainda não foram divulgados, mas especialistas consideram que não serão muito melhores do que os registrados pelos americanos. E isso num mercado que movimenta cerca de US$ 65 bilhões por ano em todo o mundo. Por aqui, ainda não há dados consolidados, mas galeristas, marchands e artistas demonstram acreditar que o ano poderá até ser melhor do que o esperado.

A empreendedora cultural Fernanda Feitosa compartilha dessa sensação. Fundadora e diretora da SP-Arte, a maior feira do setor da América Latina, com R$ 240 milhões movimentados no ano passado, Fernanda enxerga, ainda, outro fator que favorece o segmento nesses tempos de pandemia. “Em épocas de crises econômicas, alguns ativos se transformam em portos seguros, por estar menos sujeitos a variações. Obras de arte têm esse caráter”, disse. “É como investir em ouro, com a vantagem de gerar enorme bem estar ao comprador”. Com seu formato afetado pela Covid-19, a SP-Arte teve início na segunda-feira (24), em São Paulo, sendo realizada, pela primeira vez, em seus 16 anos de existência, em formato exclusivamente digital. São 136 expositores do Brasil e do exterior, apresentando o trabalho de 1 mil artistas e 2,5 mil peças. “É importantíssimo termos galerias de todo o País mostrando suas obras. Ainda mais no momento atual, em que muitas ainda estão se recuperando dos impactos da pandemia”, afirmou Fernanda.

ALTA DE 100% Uma das galerias presentes na SP-Arte deste ano é a Amparo 60, uma das mais importantes do Recife, com 20 anos de atuação e clientes em todo o Brasil. A dona do lugar, a empresária e marchand Lúcia Costa Santos, faz parte do grupo que celebra os bons ventos, mas estima que a pandemia fez seu faturamento cair cerca de 50% entre abril e junho, período do confinamento mais severo. “A partir de julho, as coisas melhoraram. E agora estão ótimas”, afirmou. Ela calcula que, nos meses de julho e agosto, suas vendas on-line tiveram alta de 100% em relação aos meses antes da pandemia. Para esse movimento, Lúcia faz uma análise que combina com a impressão de outros profissionais do setor. “Pessoas com dinheiro estão confinadas, sem poder jantar num restaurante bacana, ir ao teatro. Começaram a embelezar suas casas. E nada melhor para isso do que uma bela obra de arte”. Com 30 obras na SP-Arte, a Amparo 60 tem em seu casting 25 artistas, incluindo nomes consagrados, como Delson Uchôa, que já expôs na Bienal de Veneza, e obras que chegam a custar mais de R$ 100 mil.

A reflexão que Lúcia Costa faz, no Recife, corrobora a da empresária Munira Talluf, da galeria Um Lugar ao Sol, de Curitiba.

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“Pessoas com dinheiro estão confinadas. Começaram a embelezar suas casas com obras de arte” Lúcia Costa Santos, galerista.

“Imagine uma pessoa com dinheiro, sem poder viajar, curtir a vida. Ela vai gastar esse dinheiro de alguma maneira”, afirmou. “É aí que entra a arte, para tornar esses dias de pandemia mais belos”. Com 600 obras atualmente em sua galeria, Munira comemora a alta de 80% nas vendas pela internet, com telas comercializadas por valores entre R$ 1,8 mil e R$ 80 mil. “Isso mostra que não são apenas os ricaços que estão investindo em arte nos”. Dar espaço a artistas de várias partes do País e de várias gerações é um dos orgulhos da galerista, que tem em seu espaço obras do renomado paranaense Rogério Dias, 75 anos, e do jovem paulista Alemão, 38, a quem a pandemia também trouxe bons frutos.

MAIS TRABALHO O pintor Alemão viu a procura por suas obras aumentar em cerca de 40%. “Até elevei o preço das minhas telas. Mesmo assim, tenho entregas marcadas para daqui a 70 dias”. (Crédito:Divulgação)

Nos últimos dois meses, a procura por seu trabalho aumentou 40%. “Não estava dando conta de tanto serviço. Até aumentei o preço das minhas telas em 30%, para reduzir a quantidade de encomendas”, afirmou o pintor, cujas telas custam de R$ 4 mil a R$ 15 mil. Não adiantou. “Tenho entregas marcadas para daqui a 70 dias”. De uma ponta a outra do negócio das artes plásticas no Brasil, do leiloeiro ao artista que maneja o pincel, passando por produtores e galeristas, todos parecem concordar que a arte venceu a Covid-19.

Feira digitalizada

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A maior feira de arte da América Latina começou na segunda-feira (24), num formato até então inédito. Em sua 16a edição, a SP-Arte está sendo realizada totalmente no ambiente digital. Devido à pandemia, o evento não pôde acontecer em seu local tradicional, o Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. “Tivemos de criar um site (www.sp-arte.com) para montar toda a feira, expor as obras, receber os visitantes”, disse Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da mostra. No site, é possível navegar por projetos expositivos das galerias, visualizar obras, conhecer seus autores e ter acesso a vídeos e áudios sobre os 1 mil artistas participantes e cerca de 2,5 mil peças. Os números do primeiro dia animaram os organizadores. Na edição de 2019, 36 mil pessoas visitaram a SP-Arte nos cindo dias do evento. Na segunda-feira (24), o site recebeu 32,7 mil visitantes únicos, que somaram 2,5 milhões de visualizações e compraram mais de 100 obras. Como a organização não tem dados de vendas diárias nos anos anteriores, só será possível saber se o faturamento da SP-Arte digital será melhor do que o de 2019 após o término da feira, que vai até o domingo (30). “Mas não estamos preocupados em vender mais. Neste momento, o mais importante é manter a conexão entre o público, os artistas e os galeristas”, disse Fernanda. “O mercado de arte nacional segue de pé.”