Outubro de 1989. O Brasil atravessava um Fla-Flu político, com polarização entre defensores de Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, e estava prestes a eleger o primeiro presidente após o regime militar, quando a primeira cerveja em lata de alumínio – uma Skol de 350 ml (ainda nem existia a Ambev) – foi apresentada ao consumidor. Mais de três décadas depois, as latinhas se consolidaram, com evolução anual, para fechar 2019 com volume de 29,6 bilhões de unidades (alta de 13,7% sobre 2018) no País, em 13 tipos de latas, com tamanhos de 220 ml a 710 ml.

Maior companhia de latas de bebidas do mundo, americana Ball enxerga nesse cenário brasileiro um caminho para crescimento, ainda que com a natural queda no consumo global provocada pelo isolamento social a partir do aumento de casos da Covid-19. Hoje, a companhia tem 47% do market share no País, equivalente a quase 15 bilhões de latas produzidas anualmente e o que significa 15% do total produzido no mundo pela Ball, na faixa de 105 bilhões de latas. “Com a retomada gradual, após a queda em abril, a gente vê a lata como movimento importante da indústria de bebidas para ganhar espaço no segundo semestre”, disse Carlos Pires, CEO da Ball na América do Sul. A companhia chegou ao Brasil em 2016, com a compra global da Rexam, outra gigante à época. Nos primeiros seis meses deste ano, a Ball fechou com queda de 3,8% nas vendas e receita global de US$ 5,58 bilhões. No mesmo período do ano passado, a receita tinha encerrado na casa dos US$ 5,8 bilhões.

Na América do Sul, a queda foi maior no semestre, de 10,2%, com receita líquida de US$ 734 milhões no período, contra US$ 818 milhões registrados nos primeiros seis meses de 2019. No ano passado, a receita líquida global foi de US$ 11,5 bilhões. “Essa queda está muito concentrada nos meses de março e abril. Maio já foi de retomada e acreditamos em crescimento ao final do ano”, disse Pires. A crise do novo coronavírus e a queda na receita da companhia não afetaram o plano de investimentos em 2020. Na América do Sul, estão previstos US$ 134,2 milhões neste ano. Desse total, US$ 100 milhões ficarão no Brasil. Boa parte desse recurso está na construção de mais uma fábrica, que terá capacidade de produção anual de 1,6 bilhão de latas. A cidade de Frutal, em Minas Gerais, é uma opção, mas o martelo ainda não foi batido. A perspectiva é de que a nova planta já possa iniciar a produção entre o segundo e terceiro trimestre de 2021. Hoje, a Ball conta com 10 parques fabris no Brasil.

Outra ação da companhia neste ano foi a mudança da sede sul-americana do Rio de Janeiro para São José dos Campos (SP), em um movimento que envolve a questão logística e a proximidade com o aeroporto de Guarulhos, na capital paulista. “Buscamos um local em que tivéssemos uma boa infraestrutura, disponibilidade de mão de obra e facilidade de acesso”, afirmou. “A proposta foi estar próximo de todos os recursos da capital, mas sem ter o impacto dos problemas de locomoção, por exemplo”.

IMPULSO Em um cenário em que a economia mundial despencou e a perspectiva do Brasil é de fechar o ano com PIB negativo de 6,5%, o setor até que se saiu bem no primeiro semestre, na avaliação da própria indústria. Nos primeiros seis meses do ano, a queda na venda de bebidas em lata de alumínio foi de 3,8%, principalmente com o fechamento de bares e restaurantes em boa parte do País, a partir da segunda quinzena de março. O que sustentou o índice nesse patamar foi o crescimento de 0,6% das vendas de cerveja em lata no período, provocado pelo aumento do consumo em casa e das vendas em supermercados. A análise é do presidente-executivo da Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alumínio (Abralatas), Cátilo Cândido. “Tivemos queda relevante em abril, mas em junho houve vendas recordes. A expectativa é de fechar 2020 com alta de um dígito baixo”, disse. “Esse 0,6% de crescimento na cerveja é um excelente resultado, já que no ano passado tivemos recordes de vendas”, afirmou Cândido. Tanto é que hoje a cerveja em lata representa 70% da bebida vendida no Brasil, índice que estava na ordem de 55% antes da pandemia. Com grandes eventos como Réveillon e Carnaval incertos, a questão é como esse segmento irá reagir nos meses seguintes à retomada mais efetiva.

Segundo o presidente da Ball, refrigerantes e outras bebidas em lata tiveram um impacto contrário ao da cerveja durante o isolamento social. “A indústria de refrigerante migrou, nesse período, para embalagens de consumo familiar, como PET de 2 litros. A cerveja em lata já recuperou o patamar no fim do semestre e a grande demanda conseguiu neutralizar a queda do início da quarentena”, afirmou Carlos Pires.

No bolo do faturamento da Ball, a cerveja, naturalmente, reina absoluta, representando 84% da fatia. Refrigerantes somam 10,7% do total. Mas são nos 5,3% restantes que estão os olhos e a aposta da indústria, com investimentos em inovações e bebidas que, tradicionalmente, não eram envasadas em latas, como água, vinho e drinks, como gin tônica e rum. Os números desse segmento ainda são pequenos, mas investimentos de empresas de bebidas mostram a tendência de crescimento nesse nicho para os próximos anos.

Criada durante a pandemia e de olho nesse consumidor digital, a startup Lovin’ Wine, na cidade gaúcha de Farroupilha, começou a vender, no mês passado, exclusivamente pelo canal on-line, vinho frisante em latas, branco e rosé, a partir da uva moscatel, com 269 ml, o equivalente a um terço de uma garrafa de vinho. Esses produtos atenderiam às pessoas que bebem sozinhas e não querem desperdiçar. “A expectativa é de, em um ano, produzir um milhão de latas de vinho”, disse João Paulo Sattamini, CEO da empresa. “Nossa primeira produção já foi toda vendida, o que mostra que há espaço para novos produtos no Brasil.”

Com esse raciocínio de inovação, a Ambev iniciará distribuição no mês que vem da Ama, marca de água mineral em lata de 350 ml e que, segundo a companhia, terá 100% do lucro revertido para projetos de acesso à água potável para os estados do semiárido brasileiro. “O brasileiro está aceitando novos produtos e os diferentes tamanhos de lata. É uma tendência que vem crescendo”, disse o dirigente da Abralatas.

E num momento de crise como a que o País vive, com aumento das desigualdades e crescimento da taxa de desemprego, um caminho para a receita está na reciclagem. O Brasil lidera o ranking, com 97% de reciclagem das latas de alumínio, com 320 mil toneladas que são coletadas pelo contingente de cerca de 800 mil catadores no País, segundo a Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat). Ainda de acordo com a Abralatas, o País tem grande vantagem na reciclagem de latas sobre parte das nações da União Europeia, como Dinamarca (88%), Inglaterra (72%) e França (58%).

Mas a restrição de circulação de pessoas nas ruas e a proibição de eventos reduziram oportunidades para coleta, prejudicando uma cadeia que se beneficia da própria reciclagem, já que, em média, uma lata reciclada retorna ao mercado após 60 dias. “Houve grande paralisação desse trabalho e a cadeia da reciclagem estacionou neste momento. Nossa ação contribui com o poder público e com as indústrias. O ator que alimenta essa cadeia foi o mais afetado”, disse o presidente da Ancat, Roberto Rocha.

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“Foi excelente crescer 0,6% em cerveja, já que tivemos recorde de venda no ano passado” Cátilo Cândido, presidente-executivo da Abralatas.

Em maio, 35 entidades, incluindo Abralatas e Ancat, enviaram ofício ao presidente da República para que considerasse a essencialidade do setor de reciclagem, permitindo o funcionamento das cooperativas, e evitar que todo esse material deixasse de realimentar as próprias companhias. “As empresas estão nos apoiando, mas não tivemos nenhuma resposta do nosso pedido ao presidente. Isso é responsabilidade de todos”, afirmou Rocha. Previsível para uma administração federal que não demonstra interesse em políticas ambientais e de sustentabilidade.