A grande orquestração brasiliense em defesa da quebra de sigilo bancário e fiscal terminou na noite do último dia 13. Em nome do combate à sonegação e do aumento do salário mínimo para R$ 180, foi aprovada, no Senado, a idéia perigosa de dar à Receita Federal poderes ilimitados para vasculhar as contas dos contribuintes. Os parlamentares justificaram a posição com dados da própria Receita: 25% dos R$ 3,3 trilhões movimentados com a CPMF no ano passado deixaram de ser tributados.

Os números e o bom senso não deixam dúvidas sobre a necessidade imediata de combater a sonegação de impostos no País. Mas o projeto de lei aprovado pelos senadores transforma todos os contribuintes, sonegadores ou não, em reféns da Receita Federal. Um burocrata instalado nos escritórios da Receita pode decidir, de moto próprio ou por alguma injunção superior, que as contas de alguém podem ser devassadas. Quem garante que uma ordem desse tipo não será emitida por motivos políticos ou pessoais? De qualquer forma, uma vez que a privacidade bancária foi violada, informações minuciosas sobre como e onde os contribuintes gastam seu dinheiro passam a circular no escalão dos fiscais ? os mesmos que, vira e mexe, são envolvidos em casos de achaque e extorsão. Dados obtidos por DINHEIRO mostram que pelo menos 31 funcionários foram afastados da Receita este ano por má conduta na fiscalização.

Precedente. O projeto de lei, que espera apenas a sanção presidencial para entrar em vigor em 2001, cria um precedente alarmante. Se a Receita achar que tem em mãos indícios fortes de sonegação, poderá exigir a quebra de sigilo diretamente ao banco. Nos Estados Unidos, isso só pode ser feito com autorização judicial, que é obtida em 48 horas. O secretário Everardo Maciel, que já inspira temor, será alçado pela nova legislação à condição de Grande Irmão. Não por outra razão, juristas de todas as correntes criticaram a decisão e apontaram os problemas da transferência do poder à Receita Federal. ?É inconstitucional. A Receita pode usar os dados para fazer perseguição pessoal?, diz Celso Bandeira de Melo. O constitucionalista Walter Ceneviva faz coro: ?Os funcionários da Receita podem se servir desse poder arbitrariamente?. A opinião dos dois está baseada nos incisos 10 e 12 do artigo 5º da Carta. Ali, fica claro o direito à inviolabilidade do sigilo e à privacidade.

Quem defende a quebra do sigilo rebate a posição dos especialistas com a mesma Constituição. A turma pró-quebra cita o artigo 145, que dá direito à Receita de conferir o patrimônio e os rendimentos dos contribuintes, ?respeitando os direitos individuais?. Longe do Congresso, quem vive a rotina do setor produtivo teme agora o mau uso dos dados bancários pela Receita Federal. ?Os dados das empresas estarão extremamente expostos com a quebra do sigilo bancário?, disse a DINHEIRO o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Horácio Lafer Piva. ?O processo pode se tornar incontrolável, porque há fiscais corruptos na Receita que podem burocratizar ainda mais o sistema tributário do País.? Não é só a indústria que está reclamando. No comércio, os empresários estão em alerta depois da aprovação da quebra de sigilo. ?No comércio, a quebra do sigilo vai tornar vulneráveis micro e pequenas empresas?, diz Alencar Burti, presidente da Associação Comercial de São Paulo.

Na prática, os fiscais da Receita não terão os poderes de pedir diretamente a quebra de sigilo para os bancos. Para isso, o fiscal precisa ter em mãos um Mandado de Procedimento Fiscal, uma autorização do delegado que, por sua vez, obedece ao secretário da Receita, Everardo Maciel. Mesmo assim, o fiscal terá posteriormente todos os detalhes da vida do contribuinte. ?Como em todo órgão, há fiscais corruptos por aqui. Existe a possibilidade de os dados serem usados para chantagem. Cabe à Receita ficar de olho?, diz um fiscal do órgão, que não quis se identificar.

Tanta polêmica não impediu que a quebra de sigilo passasse como um furacão pela Câmara e pelo Senado nas duas últimas semanas. Primeiro porque o combate à sonegação é uma bandeira bonita, dessas em que políticos adoram se enrolar. Segundo, porque a quebra é uma mágica oportunista, apoiada por Fernando Henrique , que vai permitir o aumento do salário mínimo de R$ 151 para R$ 180. Como vetar o projeto seria arcar com o peso de ser contra o aumento, nem os mais fervorosos defensores da privacidade ousaram se erguer. Agora, o único que pode barrar os poderes de quebra de sigilo dados à Receita é o Supremo Tribunal Federal. Se o STF classificar a decisão do Senado inconstitucional, a lei perde automaticamente a eficácia. A defesa da privacidade deslocou-se para um novo campo de batalha.