Jornalismo e guerra sempre andaram de mãos dadas. Mesmo muito antes da existência do que chamamos de jornalismo moderno – que nasce no começo do século 17. O problema é que relatos de guerra são os mais distorcidos no campo da mídia. Por dois motivos óbvios, mas muito esquecidos nestes momentos: a) os atores decisivos – chefes de Estado e seu alto comando – não compartilham as estratégias para o grande público; b) quando o fazem, mentem. Com isso colocado, segue um breve receituário com quatro dicas para escapar das ciladas que vão da desinformação inocente a fake news descarada.

+ Entenda o impacto da invasão russa à Ucrânia nas economias brasileira e mundial

1. Há (poucos) donos das notícias

Em situações como a da invasão da Ucrânia pela Rússia, quase a totalidade do conteúdo que você (ocidental) consome em veículos tradicionais de mídia vem de três companhias globais e centenárias: Agence France-Presse/AFP (oficialmente é de 1944, mas derivou da agência Havas, que nasceu em 1835), Associated Press/AP (1846) e Reuters (1851). A primeira é francesa, a segunda é americana e a terceira, nascida em Londres. São estruturas profissionais, sérias e praticam jornalismo de altíssima qualidade – a AFP, por exemplo, tem 2,4 mil colaboradores de uma centena de nacionalidades e distribui conteúdos em 151 países. Ainda assim, em situações de guerra, como a atual, Moscou não vai privilegiar informações para jornalistas ocidentais. Vai tentar usar a agência russa Tass – bem menos consumida por aqui. No sábado (26), suas duas principais manchetes eram abertamente pró-Moscou: “Kremlin diz que Rússia é capaz de tomar medidas para reduzir danos de sanções econômicas” e “Tropas russas retomam avanço na Ucrânia devido à recusa de Kiev em negociar”. Mesmo com as parcialidades, juntar essas diversas fontes ergue um cenário mais real.

DICA 1: Consuma a informação tendo claro que toda notícia tem viés.

2. Na guerra, a primeira vítima é a verdade

Talvez a maior e mais definitiva sentença sobre guerras seja a morte da verdade. O noticiário vira uma batalha incessante de versões. Isso se multiplicou exponencialmente com o mundo digital. Kiev vai dizer que resiste e rechaça as forças russas. Moscou vai dizer que avança sobre Kiev. Vale para tudo. De número de mortos a pontos estratégicos conquistados ou destruídos. Mesmo depoimentos de testemunhas trarão distorções. Uma lição clara a esse respeito foi dada há distantes 2,5 mil anos pelo grego Tecídides, cujos relatos deram origem ao livro História da Guerra do Peloponeso, sobre o conflito que varreu a antiga Grécia por quase três décadas (431aC-404aC). Ele disse: “O empenho em apurar os fatos foi uma tarefa árdua, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas. Variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro.”

DICA 2: Nenhum relato é definitivo ou isento de intenções. Nem o jornalístico, nem o de especialistas. Trata-se de um complexo mosaico.

3. Ler o presente exige um olhar sobre eventos passados

No caso atual, está muito vinculado a uma resolução de abril de 1999 da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, ou Nato, em inglês). Intitulado uma Aliança para o Século 21 (documento original em https://www.nato.int/docu/pr/1999/p99-064e.htm), aprovada no Summit de Washington, quando houve a adesão de três países (Hungria, Polônia e República Tcheca). O trio havia feito parte da então órbita soviética. Num trecho do texto se afirmou que “a Otan do século 21 começa hoje e tem novas missões, novos membros e novas parcerias”. E resume: “Para isso, reafirma o compromisso com o processo de ampliação da Aliança e aprova um Plano de Ação de Adesão para os países que desejam aderir”. No fim dos anos 90, a Rússia se recuperava de sua fragmentação e não reagiu. Os anos 2000 chegaram em outro formato para Moscou. Como a Otan tem a obrigação de proteger seus 30 países integrantes de qualquer agressão externa, talvez a Rússia não deseje ter nos 2.300 km de fronteiras com a Ucrânia a presença de militares e instalações bélicas da Otan. Olhado no espelho é como se a China ou a Rússia tivessem com o México (e seus 3.100 km de fronteira com os Estados Unidos) um acordo de cooperação militar.

DICA 3: Revisite a história sabendo que não há santos entre potências e impérios

4. Atenção aos detalhes (e à China)

Por fim, e não menos importante, multiplicar as fontes e os olhares sobre um evento tão trágico e potencialmente destruidor (em todos os termos) pede uma atenção redobrada a detalhes. Vladimir Putin deu sinal claro de seu ponto inegociável ao dizer ao colega francês Emmanuel Macron que não aceitaria a Ucrânia na Otan. A senha para o ataque, no entanto, precisou vir da China. Na quarta-feira (23), véspera da invasão, Hua Chunying, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, deu uma paulada em termos diplomáticos: “Alguém (Joe Biden) que joga lenha na fogueira e acusa os outros assume uma postura imoral e irresponsável”, afirmou. Foi a senha para Moscou. Na sexta-feira (25), 24 horas após a invasão, Vladimir Putin e Xi Jinping, o presidente chinês, se falaram ao telefone. De acordo com a agência oficial chinesa Xinhua, o russo disse que Estados Unidos e Otan há muito ignoram “preocupações legítimas de segurança da Rússia”. Ao usar essa expressão, a Xinhua sabe do aval governamental para o tom da reportagem. O presidente chinês teria respondido: “Pequim apoia o lado russo na solução da questão por meio da negociação com o lado ucraniano”. Em suma, a solução que a China defenderá sairá de Moscou-Kiev, e não de Europa ou EUA. Ou sairá da ONU, onde russos e chineses têm poder de veto.

DICA 4: Sempre inclua as intenções da China em qualquer equação geopolítica.