As diversas latas com material bruto guardadas na sede da Apple Corps continham filmes em 16mm que estavam em pedaços, granulados. A película era conhecida por não envelhecer muito bem. Nas etiquetas estava escrito Let it Be Sessions — 60 horas não editadas do filme dirigido por Michael Lindsay Hogg, em 1969. O áudio estava em outras 150 horas de fitinhas de rolo registradas por um gravador Nagra — sem sincronia alguma com as imagens. Paul McCartney e Ringo Starr guardaram propositalmente os filmes e acharam, finalmente, que era hora de mudar a história da banda. Mesmo. O diretor das trilogias Senhor dos Anéis, Peter Jackson, passou pelo escritório beatleniano e eles mostraram um pouco do que guardaram. Era um tesouro. Juntamente do editor Jabez Olssen, pegaram, com gosto, a tarefa hercúlea. Ambos são ilustres figuras do estúdio de efeitos especiais Weta, do qual Jackson é dono e vendeu parte dele recentemente por US$ 1,6 bilhão. O resultado é o documentário mais falado deste final de ano, que exigiu muita tecnologia e paciência para ganhar qualidade.

Mas, afinal, do que se trata? Em 1969, os Beatles entraram em um enorme estúdio para ensaiar e gravar um especial para a TV, com o diretor Hogg no leme e duas câmeras gravando o tempo todo tudo o que ocorria. Deveriam ser três semanas, e apenas tocarem músicas do disco anterior, conhecido como Álbum Branco. Mudaram de ideia e resolveram compor novas músicas, passando 22 dias nessa tarefa. Também voltaram às raízes, tocando como uma banda de verdade, sem os malabarismos de estúdio.

O filme original de Hogg pintou um quadro sombrio, que narrava brigas entre os integrantes, uma Yoko Ono gerando desavenças entre eles, culminando com o final do quarteto — foi sua última gravação. As oito horas em três partes disponíveis no canal on demand Disney+ mostram outra história. Jovens, todos em seus 20 e poucos anos (sim, os Beatles terminaram com eles ainda “moleques”), estavam curtindo demais os ensaios, fazendo palhaçadas, abertos a mudanças, criando músicas que pareciam cair do céu e ralando para moldá-las nas canções inesquecíveis que temos hoje. Nada de sombrio.

SÓ DIVERSÃO O quarteto durante as gravações do que viria a ser o disco e filme Let it Be, de 1969: cores restauradas e áudio remixado com todas as conversas agora audíveis. Acima, o diretor do documentário Get Back, Peter Jackson, que remontou a história a partir do material bruto do filme de Michael Lindsay Hogg. (Crédito:Divulgação)

VILÃ QUE NÃO ERA E A YOKO? Presença constante no banquinho ao lado de Lennon, estava absolutamente tranquila, respeitosa e silenciosa — na verdade, até os aconselhou, bem, num momento em que George Harrison resolveu dar o fora do estúdio ameaçando sair da banda. Voltou alguns dias depois dizendo que o clima estava ótimo. Uma conversa entre Harrison e Lennon, aliás, nunca ouvida por McCartney antes de Jackson lhe mostrar, talvez tivesse mudado o destino dos Beatles. Harrison comentou com o autor de Imagine que tinha muitas músicas e que demoraria décadas para desová-las na banda. Perguntou se poderia gravar um disco solo. Lennon: “Ótima ideia! Podemos fazer nossos projetos e depois voltar para os Beatles!”. McCartney comentou com o diretor, entrevistado por Stephen Colbert, da CBS: “Gostaria de ter ouvido isso na época.”

Parte das descobertas é exatamente por causa dos diversos áudios até então inaudíveis no material original. “A restauração do som foi empolgante”, disse o diretor em vídeo de making-off da Disney, acrescentando que foi desenvolvido um sistema de machine learning que “aprendeu” como uma guitarra, um baixo ou uma voz soam, separadamente. “Também o ensinamos a característica da voz de cada beatle.” Então, pegaram esses áudios de um canal só e o separaram em instrumentos e vozes. “Com isso, remixamos tudo e deixamos claras todas as conversas que pareciam papos privados”, disse Jackson. Já as imagens, além de ressincronizadas (as duas câmeras não estavam alinhadas), passaram por um processo semelhante de IA, que tirou todos os defeitos nas películas e puxou para frente as cores, o contraste e a nitidez. McCartney, que colaborou com o projeto, afirmou em entrevista à Apple Music que foram horas e horas com eles simplesmente rindo e tocando música. “Nada parecido com o que o filme Let it Be mostrou.” Para ele, o documentário prova isso. Além de provar também que o charme e a personalidade que John, Paul, George e Ringo tinham eram insuperáveis.