É do general Hamilton Mourão o prefácio do livro Como destruir um país, escrito por Marcelo Suano, Fundador do Núcleo de Políticas e Estratégias da Universidade de São Paulo. A obra trata do que chama de “aventura socialista na Venezuela”, a nação destruída pelos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. A escolha de Mourão é reveladora: o vice-presidente do Brasil, que tem sido aconselhado por pessoas próximas a sair do governo, é também o estrategista encarregado, na gestão Bolsonaro, de dar a um tema que claramente destrói a reputação internacional do Brasil: o desmatamento na Amazônia. Pelos números oficiais, é possível afirmar que o esforço no general que preside o Conselho Nacional da Amazônia Legal não tem obtido êxito na preservação do maior patrimônio ambiental brasileiro. No que diz respeito à natureza, não é preciso recorrer à Venezuela para mostrar como destruir um país. E quando o assunto é a devastação cultural, não tem para ninguém. O Brasil é referência.

O Brasil ainda não saiu da década de 1980. E você nem percebeu

O incêndio que atingiu um galpão da Cinemateca Brasileira na semana passada tem sido apontado como uma tragédia anunciada. É mais que isso. É o roteiro de como destruir o futuro de um país a partir de sua memória. Foi queimando livros que regimes totalitários tentaram impedir a coexistência de visões de mundo dissonantes. A intenção era manter apenas uma matriz cultural dominante. Isso nunca deu certo. Embora não haja indício de que o fogo tenha sido ateado intencionalmente, as chamas são o desfecho de uma trajetória de descaso e desrespeito com o acervo da Cinemateca. A instituição criada nos anos 1940 por intelectuais para preservar o audiovisual brasileiro reunia cerca de 245 mil obras antes que as chamas se alastrassem pelo armazém na Vila Leopoldina. Entender esse descaso é importante não apenas para atribuir culpados, mas para que fique clara a disposição do atual governo em preservar o patrimônio cultural do Brasil.

A gestão da Cinemateca Brasileira foi transferida para a Fundação Roquette Pinto por meio de um convênio assinado no governo Michel Temer. Antes, era de responsabilidade direta do Ministério da Cultura. Em 2020, por decisão do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, o convênio com a Fundação foi rompido de forma unilateral, conforme sustenta uma ação do Ministério Público Federal de São Paulo acatada pela Justiça em maio deste ano. Segundo o jornal Correio Braziliense, que teve acesso à ação do MPF-SP, um trecho afirma o seguinte:”É fato público e notório que a Cinemateca Brasileira corre sério e iminente risco de dano irreparável por omissão e abandono do governo federal, o qual é responsável pela manutenção e preservação”. O risco de incêndio havia sido alertado pelo diretor da Fundação Roquette Pinto, Francisco Cãmpera.

Com a Fundação Roquette Pinto fora, a Cinemateca acumulou dívidas estimadas em R$ 14 milhões. Desde o ano passado foram várias as manifestações da classe artística em tentar salvar a instituição. No governo, a responsabilidade pela gestão retornou para a Secretaria Especial de Cultura, comandada por Mario Frias. Para o secretário, a culpa pela tragédia é dois governos petistas. Depois de insinuar que o incêndio poderia ter sido criminoso (embora haja indícios de que as chamas começaram durante um serviço de manutenção no ar-condicionado), Frias escreveu em sua conta na rede social Twitter: “O estado que recebemos a Cinemateca é uma das heranças malditas do governo apocalíptico do petismo, que destruiu todo o estado para rapinar o dinheiro público e sustentar uma imensa quadrilha de corrupção e sujeira criminosa. Não tivessem feito isto, teríamos verba para criar mil novas Cinematecas…”. Nem cabe aqui comentar a insanidade das afirmações. Fiquemos só com os fatos: no governo Bolsonaro não teremos mil Cinematecas. Não teremos nenhuma Cinemateca. E provavelmente não  teremos futuro.