Cientistas e médicos em todo o mundo tentam entender o que está por trás do surto de hepatite de origem ainda desconhecida que atinge países europeus, Estados Unidos e até Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 200 casos foram identificados em 14 países.

O que chama atenção é que a hepatite, inflamação causada nas células do fígado, afeta sobretudo crianças e adolescentes até 16 anos de idade, muitas delas saudáveis. Uma criança morreu e outras 17 precisaram de transplante de fígado.

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A causa, no entanto, ainda é desconhecida, mas algumas hipóteses têm sido levantadas pelos especialistas.

É muito raro observar casos graves de hepatite em crianças, afirma William Irving, professor de virologia da Universidade de Nottingham, no Reino Unido. Ele diz que, em média, os relatos de hepatite em crianças no país europeu costumam estar na casa de um dígito por ano. Só nos primeiros quatro meses de 2022, o Reino Unido já conta mais de cem.

“Acho absolutamente extraordinário”, afirma Irving. “Não vi nada assim durante minha prática clínica. É preocupante porque não sabemos o que está acontecendo.” A seguir, veja o que se já se sabe e o que ainda falta esclarecer sobre a doença.

Onde foram registrados os casos?

O surto foi relatado pela primeira vez por autoridades de saúde do Reino Unido no início de abril, com os primeiros casos em janeiro. Em 19 de abril, o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças anunciou que casos também foram registrados na Espanha, Dinamarca, Holanda e Irlanda. Ainda foram relatados casos no estado do Alabama, nos Estados Unidos.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao menos 169 casos foram detectados em 12 países até o último domingo (23/04).  A maioria dos casos reportados até agora pela OMS foi registrada no Reino Unido (114), e o restante, em outros países europeus, além de EUA e Israel.

O Instituto Robert Koch (RKI), agência governamental da Alemanha para controle e prevenção de doenças, informou nesta terça-feira que um caso de hepatite também foi detectado no país, embora ainda não esteja na contagem da OMS. Canadá e Japão também anunciaram casos da doença nos últimos dias.

O que é a doença?

Os casos relatados pela OMS atingem crianças de 1 mês a 16 anos, sendo que muitos têm menos de 5 anos. As crianças não estão testando positivo para os vírus típicos da hepatite – A, B, C, D ou E –, um cenário que Alastair Sutcliffe, professor de pediatria geral da University College de Londres, chama de “muito incomum”.

As crianças afetadas estão apresentando hepatite aguda, que significa inflamação do fígado. Em muitos casos foram relatados sintomas gastrointestinais, incluindo dor abdominal, diarreia e vômito. A maioria não apresentou febre.

A hepatite pode ter muitas causas. A doença pode resultar de infecções causadas por vírus, toxinas no álcool ou obesidade, por exemplo. Irving, da Universidade de Nottingham, afirma que, embora a causa desse surto específico ainda não esteja clara, acredita-se amplamente que possa estar relacionado a um adenovírus.

Adenovírus como possível causa?

Médicos descobriram que algumas das crianças diagnosticadas com a doença misteriosa testaram positivo para um tipo específico de infecção por adenovírus: o adenovírus 41. Irving afirma que o adenovírus 41 não foi detectado em todos os casos de hepatite em crianças, tampouco foi procurado em todos os casos, mas tem sido observado em casos suficientes para ser potencialmente mais do que uma coincidência.

O adenovírus 41 é uma infecção comum em crianças pequenas, que normalmente causa sintomas como diarreia e vômito, diz Irving, mas não é conhecido por estar associado à hepatite.

Segundo o especialista, pode estar havendo algo incomum com esse adenovírus específico, ou ele pode estar interagindo com outro fator que esteja causando a hepatite. Ou mesmo pode se tratar de um novo agente infeccioso, ou uma toxina, ou algum tipo de fator ambiental, ou uma combinação de todas essas possibilidades, afirma Irving.

E a covid-19?

Uma relação com o coronavírus também não está descartada, afirma o professor de virologia. É possível que algumas dessas crianças com hepatite tenham tido covid-19, o que afetou seu sistema imunológico, dificultando o combate a vírus típicos da infância.

Segundo a OMS, o coronavírus Sars-Cov-2 foi detectado em 20 crianças com hepatite, mas nem todas foram testadas. Além disso, 19 foram detectadas com uma coinfecção por Sars-Cov-2 e adenovírus.

Na Escócia, por exemplo, há uma variedade de resultados de testes disponíveis entre os 13 casos de hepatite em crianças registrados no país. Desses 13, três deram positivo para infecção por covid-19, cinco testaram negativo e dois contraíram o vírus nos últimos três meses. Apenas 11 dos 13 casos foram testados para o adenovírus, com cinco deles resultando positivo.

Se a infecção por covid-19 não for a raiz do problema, o efeito da pandemia na saúde das crianças pode ter desempenhado um papel, afirma Irving.

“Você tem um recorte de crianças que foi amplamente protegido, as crianças muito pequenas. Portanto, elas não foram expostas à variedade de infecções por vírus a que normalmente seriam expostas”, explica o especialista.

“Vimos neste inverno [no Hemisfério Norte] níveis muito altos de toda uma gama de infecções por vírus em crianças, incluindo adenovírus”, acrescenta. “Talvez tenha a ver com o fato de que elas tiveram dois anos de relativa esterilidade em que não estavam sendo expostas e, de repente, elas têm uma série de infecções, incluindo adenovírus, com as quais elas não estão lidando da maneira normal.”

Uma coisa é clara: a hepatite não está sendo causada pelas vacinas contra a covid-19, destaca Sutcliffe, da University College de Londres, uma vez que as crianças que contraíram a doença não haviam sido vacinadas.

É motivo para pânico?

Sutcliffe pede calma aos pais. “Meu entendimento é que muitas [crianças com hepatite] melhoraram, o que é o normal. Se reduzirmos [o surto] a um risco de insuficiência hepática, o risco é muito pequeno. Então, penso que não devemos exagerar”, diz o especialista.

Irving, por sua vez, afirma que espera ver muitos outros casos relatados nas próximas semanas, à medida que as autoridades de saúde tomarem conhecimento e começarem a rastrear o surto. O fato de o Reino Unido ter detectado tantos casos até agora se deve provavelmente aos rigorosos sistemas de relatos de saúde do país, afirma o especialista.

“Eu não entendo o Alabama”, diz Irving. “Quero dizer, por que você teria nove casos em um estado e nenhum caso nos outros 49 estados? Não faz sentido. Acho que deve ser uma função de vigilância. Acho que se está ocorrendo no Alabama, está ocorrendo em outros lugares. Eles apenas ainda não sabem disso.”