Em 15 de abril, quando soou o alarme na catedral de Notre-Dame, ninguém se preocupou muito. Os treinamentos de segurança e os falsos alertas são frequentes nesse ponto turístico da capital.

“Eram 18h23”, lembra André Finot, responsável pela comunicação da Notre-Dame que, seguindo as normas, vai para o interior da catedral para ajudar o pessoal da segurança a retirar os turistas e fiéis que assistiam à missa da Segunda-Feira Santa, início da semana de Páscoa.

A igreja esvazia tranquilamente enquanto soam as mensagens de evacuação em vários idiomas. Não há pânico. O padre que estava celebrando a missa nem sequer sai da catedral.

“Esperamos cerca de 10 minutos (do lado de fora) e então nos disseram: ‘Os fiéis podem voltar'”, diz Michèle Chevalier, de 70 anos, que sempre assiste às missas na Notre-Dame. A cerimônia recomeça, às escuras e sem microfone, porque não há eletricidade.

“De repente se ouve uma mulher gritar: Saiam! Têm que sair daqui!”, lembra Chevalier.

André Finot tinha ficado fora da catedral e “por volta das 18h46” viu um pouco de fumaça cinza saindo entre as duas torres. Decide dar a volta e vê “uma fumaça bastante densa vinda da agulha”.

Nesse momento, um agente de segurança da catedral envia para Finot uma foto do celular que confirma seu temor. “Há chamas, chamas altas, na floresta”.

– Chamas que devoram o telhado –

A “floresta” é a estrutura da catedral, assim nomeada pelo grande número de vigas utilizadas, cada uma feita de uma árvore diferente. Tem mais de 100 metros de comprimento, 13 metros de largura na nave e 40 no transepto, e 10 metros de altura.

Segundo fontes próximas da investigação, a primeira mensagem de alerta de incêndio chegou ao serviço de segurança da catedral às 18h18. A mensagem indicava uma área específica da parte superior da nave e da sacristia, seguida por um código de letras e números.

O alerta foi recebido por um agente que trabalhava na Notre-Dame há quatro dias, que enviou para outro agente para verificar a sacristia, mas que não encontrou nenhum fogo.

A pessoa que recebeu o alerta primeiro contatou seu superior e eles tentaram, por telefone durante vários minutos, esclarecer o que estava acontecendo. Finalmente entenderam para que parte da catedral teriam que ir e, quando o agente chega às 18h45, vê as chamas e avisa ao bombeiros, que chegam às 19h05.

Nesse momento as chamas já atravessaram o telhado e, atiçadas pelo vento leste, devoram as vigas, a maioria do século XIII, e derretem as 210 toneladas de chumbo do telhado.

Os bombeiros têm que abrir passagem entre a multidão para chegar até a Notre-Dame. O tempo parece ter parado nas margens do Sena, onde turistas e vizinham observam, espantados e quase hipnotizados, a fumaça e as chamas que brotam da catedral.

A comandante dos bombeiros, Myriam Chudzinski, consegue chegar a pé e entende rapidamente que a Notre-Dame está “totalmente incendiada”. Ao empurrar a porta que leva para a parte alta, ela e seus colegas encontram uma “visão do inferno”.

“O telhado era devorado pelas chamas. No tempo que usamos para estabilizar as mangueiras, menos de um minuto, o fogo avançou vários metros. Tínhamos que recuar todo o tempo”, explica a comandante.

Ariel Weil, prefeita do 4º Arrondissement (distrito) de Paris, onde fica a Notre-Dame, chega correndo “aterrorizada”, junto com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo. O reitor da catedral, monsenhor Chauvet, se une a elas, chorando.

“Meu primeiro pensamento é retirar os vizinhos da rua do claustro”, diz. Menos de dez metros separam as casas dessa rua estreita dos muros da catedral.

Do outro lado, André Finot é atingido por “uma chuva de cinzas” mas volta ao átrio com uma “ideia estúpida” na cabeça. “Pensei: ‘Não posso deixar isso acontecer, vou buscar um balde d’água'”.

Seu telefone não para de tocar. “O mundo inteiro me liga. Duas, três, quatro vezes”, diz. Ele vai atendendo como pode.

De onde está, com a fachada à sua frente, não vê nada. “A parte frontal estava perfeita, por isso não entendia o que estava acontecendo”. Finot não consegue ver a agulha, ponto mais alto da catedral, com seus mais de 90 metros de altura, que já estava envolta em chamas.

– Tristeza e apoio mundiais –

Durante minutos que pareceram intermináveis, as fotos da impressionante coluna de fumaça, agora visível em toda a cidade, e da agulha ardendo, invadem as redes sociais. De todos os cantos do mundo, cidadãos, políticos e dirigentes enviam mensagens de tristeza e apoio.

Emissoras de televisão chegam a Notre-Dame. A igreja mais famosa do mundo, o monumento mais visitado da Europa (entre 13 e 14 milhões de turistas por ano), está em chamas.

Construído entre 1163 e 1345, a catedral atravessou os séculos: sobreviveu à Revolução Francesa, a duas guerras mundiais, foi a sede da coroação de Napoleão e dos funerais de vários chefes de Estado.

Na Notre-Dame aconteceu a história de amor de Quasímodo e Esmeralda, no famoso romance de Victor Hugo, adaptado para o cinema e transformado em desenho animado e musical.

Os sinos e as gárgulas da catedral parisiense foram pintadas por Matisse, Chagall e Picasso.

A Notre-Dame é também o ponto zero da França, o ponto de origem de medida de todas as estradas do país.

A notícia do incêndio chega rápido ao Palácio do Eliseu. O presidente Emmanuel Macron cancela um discurso previsto para aquela noite e vai rapidamente para o centro de Paris.

– Como as torres gêmeas –

No telhado da catedral, Myriam Chudzinski e seus colegas lutam sem trégua contra as chamas. A comandante não vê a agulha cair. Tampouco escuta o grito de terror da multidão, que assiste ao vivo a tragédia.

No átrio também não se imagina o que está acontecendo. “Com as árvores e a altura das torres, a agulha estava escondida. Mas ouvimos um ‘oh’ (da multidão)”, lembra o bispo auxiliar de Paris, Philippe Marsset.

“Foi como quando caíram as Torres Gêmeas em Nova York. Nos perguntávamos o que estava acontecendo realmente”, lembra Florence Mathieu, que tem uma loja nas proximidades.

Os bombeiros que estão na catedral recebem a ordem de sair. Chegam reforços de toda a região parisiense. No total, 600 bombeiros trabalharam contra o avanço do fogo na catedral.

O chefe da Brigada dos Bombeiros de Paris (BSPP), general Jean-Claude Gallet, resume a situação para o presidente Macron, que acaba de chegar, aos poucos ministros presentes e para os representantes e religiosos, reunidos em uma sala da central da polícia.

O telhado está perdido. Agora é preciso deter o avanço das chamas que já chegam ao campanário norte, onde estão oito sinos que pesam cada um entre 780 quilos e 4 toneladas. Na torre sul há outros dois sinos, o maior com 13 toneladas.

Se as vigas e as tábuas de madeira cedem, os sinos caem e arrastam com eles a abóbada. Provavelmente seria o fim da Notre-Dame e a tragédia teria vítimas.

– David contra Golias –

Começa então a “batalha para salvar os campanários”. Organiza-se um grupo de cerca de 20 bombeiros, que deve voltar à torre norte sem nenhuma garantia sobre sua própria segurança.

Sua missão é apagar os focos de incêndio na estrutura, jogar água de forma preventiva nas partes que não estão em chamas e criar uma cortina de água entre o fogo do telhado e o campanário norte.

Outros bombeiros cercam a catedral e fazem o apoio com mangueiras, que parecem insignificantes diante das chamas. “É David contra Golias”, resume monsenhor Marsset.

Na parte de trás é travada outra batalha, dessa vez para salvar o patrimônio. A Notre-Dame guarda o “tesouro”, composto por vários objetos de arte e algumas das relíquias mais importantes do catolicismo, entre elas a santa coroa de espinhos que teria sido usada por Cristo, um pedaço da cruz e um cravo.

Desde as 19h30, a prefeita Anne Hidalgo mobilizou várias pessoas para essa operação. Ao cair da noite, cerca de 30 bombeiros, policiais, conservadores do Louvre e agentes municipais criam uma corrente humana desde a sacristia, retiram as obras uma por uma e enchem três caminhões, que são enviados para a prefeitura de Paris.

“Todos nós sentíamos que estávamos participando de um momento histórico. Uma causa nos unia: salvar essas obras”, lembra Sebastián Humbert, conselheiro de Anne Hidalgo, que coordenada as operações.

Cadeiras, candelabros, quadros, relicários e cálices passam de mão em mão até os caminhões, onde são registrados e protegidos antes de serem transportados. As peças mais valiosas, como a coroa de espinhos e a túnica de São Luís, permanecem nas mãos dos conservadores, “que as transportam como se fossem recém-nascidos”, diz Humbert.

As obras são guardadas na prefeitura de Paris, perto de Notre-Dame, muitas em uma caixa-forte.

– Orações na noite –

Por volta das 23h00, o general Gallet anuncia a esperada notícia: “A estrutura da Notre-Dame está a salvo e preservada em sua totalidade”.

Parecia que as orações e cantos dos católicos ajoelhados nas margens dos Sena tinham sido ouvidos. O monsenhor Marsset também orou silenciosamente, sem o terço, nem as mãos erguidas para o alto. “Aqueles que o Senhor podia enviar naquele dia não eram anjos, eram bombeiros”, lembra.

O presidente Macron insiste em ver o interior e um pequeno grupo entra na catedral na escuridão. O chumbo derretido continua caindo pelo buraco da flecha. A fumaça brota das pedras e das vigas e no fundo da catedral, no coro, uma cruz dourada resplandece.

“Uma atmosfera crepuscular”, descreve Ariel Weil. “Há cinzas e escombros, mas o que chama a atenção é que ela está ali, que aguentou”.

Muitos abandonam o átrio, aliviados. Os bombeiros ficam para terminar seu trabalho.

Pouco depois das 03h30 da madrugada, o fogo, ainda não totalmente apagado, é declarado “completamente controlado”.

Depois de quase nove horas de luta, angústia e oração, a Notre-Dame está a salvo.