O Brasil ainda buscava respostas para o assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar, sob Ernesto Geisel. Na terça-feira 3 de fevereiro de 1976, os exemplares do Estadão que chegavam às bancas exibiam um anúncio de impacto político. Em sua página 15, o jornal publicava um abaixo-assinado que viria a permanecer na História como um corajoso manifesto de classe em favor da verdade e da memória de Vlado, e contrário à encenação de suicídio, em outubro do ano anterior.

Publicado em espaço de anúncio, o texto apontava novas inconsistências no relatório do inquérito policial militar forjado para mascarar o assassinato do diretor de jornalismo da TV Cultura e ex-repórter que ajudou a instalar a sucursal do Estadão em Brasília, um crime ocorrido nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. As constatações lançaram luz sobre a farsa de que Herzog, aos 38 anos, apresentou-se espontaneamente para um depoimento e tirou a própria vida ao se enforcar na cela, com os joelhos dobrados.

“Nós, abaixo assinados, jornalistas, que acompanhamos todo o caso da morte de nosso companheiro de trabalho, Vladimir Herzog – uma tragédia que traumatizou não só a nossa categoria, mas a consciência de toda a Nação – interessados na descoberta da verdade e na total elucidação dos fatos, por força mesmo da natureza da nossa profissão, vimos de público levantar algumas indagações, sugeridas pela leitura do Relatório do Inquérito Policial-Militar divulgado no último dia 20 de dezembro”, dizia a publicação.

O manifesto era assinado por 1.004 jornalistas. De Mário Quintana a Ruy Mesquita Filho. De Carlos Chagas a Carlos Fehlberg, porta-voz de Emílio Médici. O anúncio, custeado por profissionais de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Natal, Porto Alegre e Curitiba saiu com o título “Em nome da verdade” e dividia a página com uma lista de aprovados no vestibular.

Possivelmente por tropeços nos linotipos que geravam as páginas em uma outra época do Estadão, alguns nomes tiveram as grafias comprometidas. Agora, 45 anos depois da publicação, pela primeira vez os signatários estão corretamente identificados. O trabalho é fruto de pesquisa do também jornalista e historiador Mauro Malin. As descobertas serão usadas em um capítulo extra da sétima edição do livro Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil, publicado em 1979 por Fernando Pacheco Jordão.

Além das correções, Malin resgata dos signatários ainda vivos memórias sobre as circunstâncias que os levaram a assinar o manifesto. Pelo prisma da época, o ato era uma transgressão e poderia fazer os autores figurarem em listas de subversivos. As narrativas estão disponíveis no site do Instituto Vladimir Herzog. “As pessoas assinaram corajosamente. O João Guilherme Vargas Netto, que está na origem de toda perseguição a jornalistas de São Paulo, me deu um depoimento e disse uma coisa que eu tenho repetido. É um dos maiores atos de coragem coletiva da História do Brasil. Questionou-se um IPM, bateram de frente com o Exército”, frisa o pesquisador.

Os relatos ajudam a reconstruir parte do contexto da luta pela reabertura democrática que as consequências do assassinato de Vlado acabaram por contribuir. A ditadura usou o mesmo expediente para eliminar o metalúrgico Manoel Fiel Filho e outros dissidentes. A sucessão de arbítrios abalou o governo e resultou na queda do comandante do Exército, Ednardo D’Ávila Mello.

Catarse. Vlado era querido e respeitado por colegas da imprensa. A jornalista Vilma Gryzinski trabalhava no Estadão em São Paulo e lembrou como a morte gerou comoção. “Os diretores do jornal haviam liberado todo mundo para ir ao ato ecumênico. Isso incentivou colegas que não eram de esquerda, muito menos simpatizantes do velho Partidão, a fazer talvez o primeiro protesto de suas vidas”, lembra.

“Um protesto um pouco temeroso e ao mesmo tempo catártico”, ressalta. “Foi como se a morte de um ‘homem justo’ como Vladimir Herzog tivesse servido para superar as barreiras do medo, o mais poderoso instrumento das ditaduras.”

O jornalista e escritor Zuenir Ventura também enviou uma memória. Em 1976, ele trabalhava na extinta revista Visão. “Tinha 45 anos. Um companheiro me falou do manifesto e eu, claro, assinei. No meu livro Minhas Histórias dos Outros tem um capítulo sobre o episódio. Vlado foi pra mim na Visão quase um irmão. Clarice e os filhos sabem disso”, contou.

Ao aceitar publicar o anúncio que contrariava o discurso oficial do regime militar, o Estadão dava sequência a publicações que já vinham colocando em xeque a credibilidade do inquérito. Uma delas foi a que questionou o fato de a portaria do Exército que originou a investigação ter de antemão indicado o desfecho. A ordem era “apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio”, e não as circunstâncias da morte.

Inconsistências. O texto do abaixo-assinado de 1976, redigido por Pacheco Jordão e referendado pelos mil jornalistas, apontava cinco inconsistências. Uma delas era o fato de o relatório apontar que Herzog se matou usando “a cinta do macacão que usava”, sem apresentar qualquer hipótese para o jornalista ter permanecido com a vestimenta, uma vez que a praxe é a disponibilização de roupas especiais e a fiscalização permanente.

Outro problema era o fato de que no laudo do exame de corpo de delito, do Instituto Médico Legal, os legistas Harry Shibata e Arildo T. Viana descreviam que a roupa que a vítima chegou para a necropsia não era o macacão descrito no laudo fotográfico do encontro do cadáver, mas a que ele saíra de casa para se apresentar aos oficiais. “O que aconteceu foi um marco na luta pela abertura democrática, mas também foi um marco de impunidade”, destacou Malin.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.