Versa uma antiga lenda russa que as Matrioskas (bonecas de madeira que se encaixam uma dentro da outra) foram criadas por um artesão que, para não se sentir solitário, talhou um bibelô. A boneca também queria companhia, e o artesão fez uma exatamente igual, mas um pouco menor. Na sequência, outra menor ainda. Quando a terceira boneca pediu companhia, ele resolveu criar um boneco, com bigode. Este contrariou seus pares maiores e se revelou mau. Disse ao seu criador que não importa o quanto uma pessoa se dedique à paz e à boa convivência, o mal também faz parte da história.

O desenrolar da invasão russa em território ucraniano, desde 24 de fevereiro, comprova o argumento do último boneco. Os efeitos nefastos da guerra deixam marcas profundas nas populações atingidas, como tem diariamente denunciado o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Em uma economia globalizada e integrada, no entanto, os estragos e as cicatrizes também serão sentidos e vistos no restante do mundo.

Na segunda-feira (7), quando o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que o preço do barril de petróleo poderia chegar a US$ 300 com o embargo à produção de seu país, ele atingiu — sem lançamento de mísseis ou disparo de fuzis — boa parte de seus inimigos mundo afora. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden fez cálculos, prometeu subsídios e vai anunciar medidas para garantir que essa alta não desorganize a inflação americana. Na Europa, a preocupação é maior: está sob o solo russo grande parte do gás natural que aquece os lares e alimenta a indústria. O presidente francês, Emmanuel Macron, tenta abrir o diálogo com Putin enquanto movimenta recursos na UE para desenvolver alternativas energéticas.

VAI PASSAR DE R$ 10? A Petrobras anunciou nova alta de preços nas refinarias, na quinta-feira (10). O litro da gasolina pode chegar a dois dígitos em alguns estados. (Crédito:Arquivo Pessoal)

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro também tem suas próprias razões para se preocupar. Talvez ele não aguente a pressão dos preços dos combustíveis — em especial em ano de eleição. Na quinta-feira (10), em meio à disparada dos preços do petróleo, a Petrobras anunciou uma paulada nos preços de gasolina e diesel após quase dois meses de valores congelados nas refinarias. O preço médio de venda do diesel subiu de R$ 3,61 para R$ 4,51, aumento de 24,9%. A gasolina passou de R$ 3,25 para R$ 3,86 por litro, alta de 18,8%. “Após 57 dias sem reajustes, a partir de 11/03/2022, a Petrobras fará ajustes nos seus preços de venda de gasolina e diesel para as distribuidoras”, informou a estatal. Com essa alta, pelos cálculos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o litro da gasolina pode passar de R$ 10 em alguns Estados, como Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Tocantins.

No caso do botijão de gás, o preço médio de venda do GLP da Petrobras para as distribuidoras foi reajustado em 16,1%, passando de R$ 3,86 para R$ 4,48 por quilo, equivalente a R$ 58,21 por 13 quilos. O produto não era reajustado havia 152 dias. “Esses valores refletem parte da elevação dos patamares internacionais de preços de petróleo, impactados pela oferta limitada frente a demanda mundial por energia. Mantemos nosso monitoramento contínuo do mercado nesse momento desafiador e de alta volatilidade”, acrescentou a estatal. Levantamento divulgado no começo de março pela Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) mostrou que os valores médios de diesel e gasolina da Petrobras nas refinarias tinham atingido 25% de defasagem ante a paridade de importação, um nível não visto havia cerca de dez anos.

MEDO DE GREVE O horror da guerra e o terror da alta de preços são vistos como uma bomba letal em um país desgovernado como o Brasil. Em ano eleitoral, o descontrole da cotação do petróleo pode envenenar a rota da reeleição traçada por Bolsonaro. O maior temor do presidente, segundo fontes ligadas ao Palácio do Planalto, é o surgimento de uma nova greve de caminhoneiros. Para Piter Carvalho, economista da Valor Investimentos, o cenário internacional vai ditar os rumos no Brasil. “Em um cenário de pandemia e guerra, vamos ver se a economia estará preparada para enfrentar os solavancos de fora”, disse.

Fátima Meira

“O mundo mergulhou num cenário de incertezas, e é isso que estamos monitorando” Joaquim Luna e Silva, presidente da Petrobras

Com o barril do petróleo chegando a US$ 139 no dia 7 de março (e oscilando desde então a cada movimento da Rússia), a inflação voltou a tirar o sono no Palácio da Alvorada. Questionado sobre o assunto, Bolsonaro afirmou que cogitava uma intervenção nos preços, relembrando a prática de Lula e Dilma que fez da Petrobras a petrolífera mais endividada do mundo entre 2016 e 2019. “O pior que pode acontecer com a Petrobras não é petróleo caro ou barato, é a indefinição de quais são as regras do jogo”, disse o economista Renato Veloni, diretor de planejamento da consultoria Amicci e professor de macroeconomia do Ibmec. “No fim das contas, as incertezas políticas sobre a estatal causam prejuízo aos investidores e a fatura é paga por todos os brasileiros.”

De fato, no mesmo dia da fala de Bolsonaro os papéis da estatal (PETR3) desabaram 7,65%. Mas a bravata acabou desmentida pelo presidente da Petrobras, Joaquim Luna e Silva, com o hiper reajuste do dia 11. “O mundo mergulhou num cenário de incertezas, e é isso que estamos monitorando”, disse Luna em entrevista à agência Reuters, dias antes de anunciar o reajuste. Na esfera política, a decisão da estatal desmoraliza Bolsonaro e acaba com a tentação de ingerência do presidente. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também fez o mesmo. “Não tem congelamento, esquece esse troço”, disse Guedes a jornalistas, na terça-feira (8). “Só maluco congela preço.”

RISCO FISCAL Num voo solo para tentar manter o que resta de controle fiscal, a voz do Posto Ipiranga (por ironia do destino) não foi o bastante para tirar da cabeça do presidente essa conduta, mas bastou para que todos acalmassem o ânimo e buscassem um discurso uníssono. Guedes, que tem em sua veia um discurso liberal e organizado, tenta fazer o presidente desviar das medidas populistas e eleitoreiras, mas é impossível ensinar novos truques a cachorros velhos. O acordo, até agora, é tentar traçar um plano de ação. Um técnico próximo ao ministro disse que essa articulação de Guedes resultou no adiamento da votação de dois projetos de Lei no Senado que tratam do aumento dos preços.

JF DIORIO

“Só maluco congela preços dos combustíveis. esquece esse troço” Paulo Guedes Ministro da Economia.

A decisão foi tomada depois de um encontro no Palácio do Planalto, na manhã de quarta-feira (9) com o presidente e os ministros Ciro Nogueira (Casa Civil), Paulo Guedes (Economia) e Bento Albuquerque (Minas e Energia), além do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Pelo lado do governo, a melhor aposta para o controle dos combustíveis é o Projeto de Lei Parlamentar (PLP) 11, que muda a forma como o ICMS é calculado. Hoje, o imposto estadual é fixado com base num percentual sobre o valor do combustível — quando o valor sobe, o ICMS também sobe. O projeto muda essa cobrança para um valor fixo em centavos. Há outro texto, o Projeto de Lei (PL) 1472/202, que propõe a criação de fundo de amortecimento dos preços, que seria utilizado em casos como o atual. Relator dos dois projetos, o senador Jean Paul Prates (PT) afirmou que os dois textos que estão sob não terão mudanças substanciais e serão levados a plenário. “Precisamos procurar alternativas para reduzir o peso da variação no bolso dos brasileiros”, disse.

Para Luciano Zahir, doutor em economia aplicada e consultor da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, as duas medidas apresentam problemas estruturais. “A questão do ICMS terá um efeito pequeno na inflação, porque os estados tratarão de repor a perda deste tributo em outros”, disse. No caso do fundo amortecedor, ainda falta clareza. “Não há indicação de quem vai financiar, de onde vem o recurso ou como será reposto”, afirmou.

A inflação dos combustíveis — que vai encarecer tudo na economia, especialmente os alimentos — é um desafio para o governo. Miguel Ballester, professor de economia da Oxford University e especialista no mercado internacional de petróleo, disse que alguns países até tentaram criar soluções parecidas com o fundo, mas os problemas logo apareceram. “Em Portugal o fundo funcionou bem quando o petróleo estava em baixa, mas secou na primeira alta e nunca mais foi reposto”, disse. Outro caso citado por ele se dá na Noruega, em que 20% do valor do litro do combustível e até 30% da energia suja é redirecionado para um fundo similar. “Mas falamos de um país pequeno, que tenta diminuir o uso do carro, e tem um IDH alto. Não é o caso do Brasil”.

SEM SOLUÇÃO O exemplo mais próximo da nossa realidade foi verificado no Chile. Por lá, cerca de 10% do preço do litro do combustível vai para esse fundo, mas ele não começou a ser abastecido durante uma crise. “Vamos ver se funcionou depois que essa crise passar”, disse o acadêmico. Para ele, mais eficiente em um país com as fragilidades do Brasil é direcionar o subsídio, e não diluir. Explico. Mais vale oferecer um vale gás para as famílias pobres do que desonerar a cadeia produtiva. Tem mais efeito pagar um voucher para caminhoneiros ou dar descontos para o usuário do transporte público do que abaixar o preço do diesel artificialmente. “Os benefícios na cadeia de produção ou redução de impostos é muito mais benéfico para quem é rico, e seu efeito no controle da inflação é mínimo quando dissipado”, afirmou.

A verdade é que o País tem poucos mecanismos para conter o tsunami de inflação. Para o economista Marcio Sette Fortes, professor de Relações Internacionais do Ibmec, o Brasil vai continuar “importando inflação” pelos próximos meses. “A alta do petróleo, o encarecimento do frete e a restrição na importação de fertilizantes vão empurrar os preços para cima”, afirmou. “A tendência é de piora das condições sociais e agravamento da situação das contas públicas.” Paulo Guedes sabe disso. Caso o subsídio pensado por Bolsonaro tivesse em vigor em 2021, o custo para o governo estaria na casa dos R$ 115 bilhões, segundo cálculos levantados no Portal da Transparência com dados do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP). Neste ano, esse valor poderia ultrapassar R$ 300 bilhões tudo para tentar segurar o combustível perto de R$ 5, o que ainda é caro para a imensa maioria da população.

POPULISMO FISCAL Na avaliação de Nicola Tingas, economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), todas as medidas do governo para amortecer os impactos da guerra de Putin serão voltadas às eleições de outubro. “Não podemos esperar nenhum pensamento estrutural de grande monta, mas sim um pensamento conjuntural e esdrúxulo com iniciativas pontuais para eleição”, afirmou.

Por enquanto, o governo não inspira confiança na condução econômica. Na reunião entre Bolsonaro e a trupe do petróleo, na semana passada, outra alternativa foi trazida à mesa de debate: o uso dos dividendos da Petrobras para subsidiar o combustível. O movimento foi rechaçado por Guedes, que vê nessa estratégia o caminho para que se fure de vez o teto de gastos. Sem soluções aparentes, a saída temporária foi negociar com o Senado que segure por mais alguns dias a votação dos projetos, até que o governo consiga apresentar soluções.

CAMINHO DO GÁS Dependência da União Europeia do gás russo preocupa o bloco.

Em meio à guerra, se comportando com um cão que caiu do caminhão de mudança, resta a Bolsonaro e seu time econômico rezarem pelo fim do conflito na Ucrânia. Como escreveu o russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), no livro Crime e Castigo: “A tragédia e a sátira são irmãs e estão sempre de acordo. Consideradas ao mesmo tempo recebem o nome de verdade.”