Pragmáticos, os alemães cunharam o termo “realpolitik”. Refere-se a uma abordagem essencialmente prática da política, voltada a objetivos concretos e sem influência da ideologia e da tradição. Na sexta-feira (22), o ministro da Economia, Paulo Guedes, mostrou-se um entusiasta da realpolitik. Ele colocou de lado sua ideologia favorável ao Estado mínimo, jogou às urtigas sua biografia e sua trajetória como defensor do liberalismo, para tornar-se operador-sênior do projeto de reeleição de Jair Bolsonaro.

O ponto fulcral da discussão foi o valor do Auxílio Brasil, ajuda mensal para os brasileiros de baixa renda que vai substituir o Bolsa Família e que deve durar até dezembro de 2022 — coincidentemente (ou nem tanto) após o segundo turno da eleição presidencial do ano que vem. Técnicos do Ministério da Economia defendiam um auxílio de R$ 300, mas a ala política do governo propunha R$ 400.

Menos do que o valor em si, a diferença permite a flexibilização do teto de gastos. Ou seja, uma pragmática permissão para o governo estourar os gastos e cortejar deputados para garantir palanques no pleito no ano que vem. A proposta, vista como derrota definitiva para qualquer projeto de controle das contas públicas, foi acolhida por Guedes e levou a várias baixas de peso na equipe econômica. “Não vamos tirar um dez na política fiscal e zero na política social, preferimos tirar um oito em fiscal em vez de dez e atender os mais frágeis”, disse Guedes na entrevista em que admitiu a capitulação, concedida ao lado de Bolsonaro.

A reação do mercado foi péssima, com alta dos juros pelo Banco Central, revisões para cima na inflação deste ano e para baixo no crescimento econômico para 2022. A realpolitik caracteriza-se pelo pragmatismo. E, pragmaticamente, os agentes econômicos abandonam as ilusões e se preparam para tempos turbulentos, como você verá nas páginas a seguir.

A imagem de Paulo Guedes que ilustra a abertura desta reportagem foi inspirada na capa da edição de 1 de novembro da revista americana Time, com Mark Zuckerberg

A DEMOLIÇÃO DO TETO DE GASTOS

LIBERAIS DE TAUBATÉ Um antiliberal como Bolsonaro e um suposto liberal como Guedes levam o País ao buraco. (Crédito:Andressa Anholete)

Diz o dito popular que o pior cego é o que não quer ver. Essa frase sem origem conhecida atravessa os tempos, é usada em ao menos 12 línguas e descreve com precisão a atabalhoada jornada de Paulo Guedes à frente do Ministério da Economia. Liberal de carteirinha, Guedes corteja o poder há tempos. Chegou a ser pré-sondado para o então Ministério da Fazenda no início do segundo mandato de Dilma Rousseff. No entanto, a oportunidade para conduzir a economia brasileira surgiu ao se tornar fiador de Jair Bolsonaro junto ao mercado. Guedes grampeou sua biografia ao projeto de poder de um presidente tosco, turrão, pouco democrático e historicamente estatista.

O resultado era tão previsível quanto 2 mais 2 são 4. A economia definha, indicadores despencam e o pedido constrangido para furar o teto de gastos cravou o último prego enferrujado no caixão sem enfeites de uma morte anunciada há meses: a do liberalismo da campanha eleitoral de 2018. Com o tempo, porém, ficou clara a inutilidade de tentar “civilizar” um presidente sero liberal. As dicas anunciavam que o teto de gastos racharia, as reformas não sairiam e o “posto Ipiranga” ficaria sem combustível na primeira briga com Bolsonaro.

Dito e feito. As brigas foram muitas. Cada uma causava uma baixa no ministério e 21 indicados de Guedes deixaram o governo. O primeiro foi Joaquim Levy, que deixou o BNDES em junho de 2019. A despedida mais recente foi a do Secretário de Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, na quinta-feira (21). Levy virou alvo de Bolsonaro logo no início do mandato, por negar-se a abrir uma “caixa preta” do BNDES que existia apenas na cabeça do capitão. Já Funchal, secretário por trás dos planos de Orçamento, saiu quando o teto de gastos rachou de vez.Um dos ex-secretários de Guedes afirmou à DINHEIRO que mais três frentistas vão pedir as contas. “O clima é de pressão política, Guedes trabalha por um projeto político”, disse um deles. E uma agenda política no Ministério é garantia de que a economia vai desabar.

R$ 96,5 bilhões é a estimativa do IFI de rombo no teto dos gastos ano que vem, muito acima dos R$ 40 bilhões necessários para o novo programa social do governo

Segundo o presidente do Instituto Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, o governo pegou poucos sinais de melhora da economia, como a diminuição da dívida pública e a alta na arrecadação, para justificar o abandono da âncora fiscal. “Já está claro que partiremos do zero em 2023”, disse. E criou-se a fantasia inflacionária que mudou a fórmula de cálculo do reajuste do teto. Atualmente, os números são atualizados aplicando-se o IPCA acumulado nos 12 meses até junho do ano anterior à vigência do limite de gastos. A ideia agora é adotar a correção da inflação de janeiro a dezembro. Segundo Salto, essa medida, com a manobra de empurrar as dívidas de precatórios para cima do teto somam R$ 95,6 bilhões — muito acima dos R$ 40 bilhões necessários para custear o Renda Brasil. “Ou seja, há outros R$ 55,6 bilhões para gastos acima do teto. O desmonte já se confirma”, disse.

Ao defender as mudanças, Bolsonaro faz parecer que essa era a única saída. Há muitas razões para contestar essa balela. A ex-secretária da Fazenda do Rio de Janeiro Célia Lins enumera algumas. “O governo poderia acabar com o abono salarial, com o seguro-defeso e com o seguro desemprego. Poderia eliminar as desonerações restantes na folha do pagamento”, disse ela. Também poderia eliminar os benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus, elevar o Imposto sobre a Produção Industrial (IPI), passar a tributar as grandes fortunas e cobrar os maiores devedores do INSS.

O Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) calculou que se a Receita Federal deixasse de permitir a dedução das despesas médicas no Imposto de Renda das pessoas físicas seriam arrecadados R$ 20 bilhões ao ano. E mais R$ 17 bilhões com o fim da isenção por grave acidente. Suficiente para fazer caber tudo abaixo do teto.

Um estudo da própria equipe de Guedes mostra que, se o benefício ficasse em R$ 300, não seria preciso furar o teto. Porém, o objetivo era furar, seguindo a regra do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles: onde passa boi, passa boiada. O governo tem agora mais recursos para as emendas parlamentares, para elevar o salário das categorias mais baixas das Forças Armadas e dar um afago aos caminhoneiros. Para Bolsonaro está tudo resolvido. O plano é seguir a agenda populista e “deixar que o mercado precifique”. Mas, é impossível precificar um presidente que tem certeza de que 2 mais 2 são 5.

*Paula Cristina

AS PALAVRAS QUE AFETAM OS NÚMEROS

Ao confirmar na sexta-feira (22) que o governo estava renunciando ao teto de gastos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, iniciou um dos mais drásticos processos de reversão de expectativas dos agentes econômicos dos últimos anos. Diferentemente da praxe, não demorou para o que era uma percepção se tornasse o discurso oficial. Na quarta-feira (27) o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a taxa Selic para 7,75% ao ano, uma alta de 1,5 ponto porcentual, e informou que em menos de dois meses, na reunião de dezembro, deverá haver outra alta dessa magnitude. Com isso, a Selic deve encerrar 2021 a 9,25% ao ano, maior patamar desde o governo de Michel Temer.

Mesmo redigido na linguagem sóbria e contida dos bancos centrais, o Comunicado que se seguiu ao anúncio da reunião não poderia ser mais claro sobre a gravidade da situação. “O Comitê avalia que recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de desancoragem das expectativas de inflação”, informou. Isso “aumenta a assimetria altista no balanço de riscos” e “implica maior probabilidade de trajetórias para a inflação acima do projetado”. E também não deixou dúvidas quanto ao tratamento prescrito, afirmando que “neste momento, o cenário básico e o balanço de riscos indicam ser apropriado que o ciclo de aperto monetário avance ainda mais no território contracionista” mesmo sabendo que “essa decisão implica suavização das flutuações do nível de atividade econômica e fomento do pleno emprego”.

Em português de dia de semana, isso quer dizer que o Banco Central vai aumentar os juros até o fim deste ano e continuar a elevá-los no início de 2022 para conter a inflação. A alta de preços é um fenômeno global. Tanto nas economias desenvolvidas quanto nas emergentes, os preços vêm subindo devido a dois fatores. O primeiro é a brutal expansão monetária. Países que tinham folgas financeiras (e mesmo os que não as tinham) aumentaram o crédito e injetaram dinheiro na economia para suavizar os efeitos da pandemia. O segundo são os problemas no retorno à normalidade. As normalmente azeitadas correntes de comércio foram prejudicadas. A escassez mais visível é a de chips, que afeta a produção de veículos. Com isso, há distorções que elevam alguns preços.

OLGA VLAHOU

“Fica difícil para o mercado precificar quais serão os próximos passos a serem dados pelo governo na política macroeconômica” Sergio Rial presidente executivo do Santander Brasil.

No entanto, no Brasil a alta de preços provocada pela escassez hídrica que encarece energia e comida tem mais uma causa. O governo está gastando muito, e as declarações de Guedes na sexta-feira confirmaram que isso deixou de ser um problema em Brasília. Não demorou para que os profissionais do mercado financeiro revisassem para pior seus prognósticos para o ano que vem.

Uma comparação simples entre indicadores financeiros mostra o tamanho do desprazer que a mudança provocou no mercado. Basta comparar as expectativas levantadas pelo próprio BC no Relatório Focus. No início de 2021, a Selic esperada para o fim do ano era de 3%. Agora, a previsão é de 9,25%. A inflação prevista subiu de 3,32% para 8,96%. Os números também são evidentes em mostrar o problema. Os juros de longo prazo no mercado futuro subiram de 4,2% no início do ano para 11,4% no fim de outubro, e o Ibovespa recuou 10,9%, caindo de 119 mil para 106 mil pontos.

O primeiro a refazer as contas foi o Itaú Unibanco. Logo na segunda-feira (25) o banco divulgou um relatório alterando sua projeção para o Produto Interno Bruto (PIB) de 2022. Em vez de uma alta de 0,5%, o banco agora espera uma retração de 0,5%. “Notícias sobre o aumento dos gastos fiscais aumentaram as dúvidas sobre o futuro do arcabouço fiscal no Brasil, que desde 2016 tem sido baseado em um teto de gastos ajustável (…) e sem uma âncora fiscal crível, a tarefa do Banco Central de manter a inflação na meta se torna mais difícil”, segundo o texto.

PAÍS SEM CONTROLE Cartazes nas ruas de São Paulo criticando a alta de preços: mercado elevou as projeções para a inflação e para os juros. (Crédito:Bruno Rocha)

O banco diagnosticou a doença e foi preciso ao prescrever o tratamento. “Uma rápida retomada da agenda de reforma (…) fortaleceria a flexibilidade e resiliência fiscais e poderia ajudar a aliviar as condições financeiras e reduzir a incerteza.” Outros bancos também refizeram suas contas. Na terça-feira (26) o JP Morgan informou prever juros de 11,25% em abril do ano que vem, estimativa parecida com a do Citibank.Outros números já provam a piora das expectativas. Segundo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), 68 empresas cancelaram projetos de abrir capital na B3. Três delas interromperam o processo logo após o anúncio de rompimento do teto, em uma antecipação ao que está por vir.

INCONSISTÊNCIA Ao comentar os resultados recordes do Santander Brasil no terceiro trimestre, o presidente executivo, Sergio Rial, confirmou a preocupação. “Basta olhar a curva de juros de longo prazo e a percepção do risco Brasil para notar que houve uma piora nas expectativas”, disse ele. Na avaliação de Rial, o grande problema é a inconsistência nas narrativas do governo. “Havia uma agenda de simplificação tributária que simplesmente deixou de ser mencionada, e foi substituída por uma nova agenda de auxílio”, disse Rial. “Fica difícil para o mercado precificar quais serão os próximos passos a serem dados pelo governo na questão da política macroeconômica.”

-0,5% a previsão do itaú unibanco para o pib de 2022 é de retração. antes da fala de guedes, a projeção era de alta de 0,5%

Segundo Rial, essa indefinição amplifica a volatilidade do câmbio, o que é bastante danoso para a economia. Além de pressionar a inflação, um câmbio excessivamente volátil aumenta a percepção de risco e dificulta os investimentos. “O dólar pode estar em um patamar mais ou menos elevado, mas se houver estabilidade as empresas e os investidores se ajustam, mas muita oscilação é ruim.” E a conclusão, para Rial e os demais agentes econômicos, é uma só. A política monetária pode até ser assertiva, mas sem uma sinalização clara de equilíbrio das contas públicas no médio e no longo prazo, o custo da dívida interna se torna proibitivo. Uma lição que o liberal Paulo Guedes aprendeu bem em sua passagem por Chicago, mas que deve ter sido apagada pelo clima seco de Brasília: governo que gasta aumenta o risco, e país arriscado afugenta investidor.

*Cláudio Gradilone

ENTREVISTA: VanDyck Silveira, Economista e CEO da Trevisan Escola de Negócios
“O Brasil terá uma recessão técnica no último trimestre”

Claudio Gatti

Com o governo minando suas melhores armas de controle da inflação e crescimento ao derrubar o teto de gastos, País entra em um espiral de juros alto, preços caros, dólar volátil e pressão internacional fatores que não serão resolvidos com um auxílio eleitoreiro de R$ 400. Veja as análises do economista:

PIB
Em dezembro haverá uma leve contração do PIB, o que coloca o Brasil em recessão técnica. O crescimento será de até 3,5%.

AUXÍLIO BRASIL
É mais importante controlar a inflação do que dar dinheiro aos pobres. Porque dar dinheiro ao pobre, esse projeto populista e eleitoreiro dos R$ 400, você dá o dinheiro ao sujeito e conforme a inflação sobe forte, o poder de compra do auxílio despenca.

DESEMPRE
Fica onde está. Não haverá grandes ganhos pois o Brasil não está crescendo. Cresceu em comparação a 2020, mas segue muito abaixo da base pré-pandemia, que já era deprimida.

TETO DE GASTOS
Não existia nenhuma razão para que a gente estourasse o teto de gastos para a camada mais pobre da população. Na verdade a gente podia dar até o dobro, R$ 800. É factível contando que tivesse uma contrapartida fiscal.

PONTO ALTO DO GOVERNO
A mudança na trajetória da dívida em 2019 foi a maior conquista deste governo, mas o ministério da Economia foi muito incompetente em contar isso. Foi isso que deu condições de se bancar o Auxílio Emergencial.

PAULO GUEDES
É frustrante essa posição. Subiu neste rabo de cometa desgovernado. Virou cabo eleitoral. Mostra que para ele vale mais estar como ministro do que ser um ministro eficaz.

ESTRUTURA FISCAL
Para o mercado, a estrutura fiscal do Brasil é insustentável. E a dívida vai ser insustentável sem teto de gastos. Temos uma só arma no arsenal para combater a inflação: é a política monetária, que em termos militares equivale a uma bomba atômica.

DÓLAR
A volatilidade seguirá na nossa moeda. Ficaremos nessa oscilação de R$ 5,50, R$5,60 até o final do ano. Ano que vem deve permanecer em um patamar de R$ 5,50, tudo isso sob condições normais.

PRIVATIZAÇÕES
O governo falou muito e não entregou nada. Somos perdedores contumazes nesse quesito.

CENÁRIO EXTERNO
Tudo indica que o FED deixará a taxa de juro negativa e entrará na positiva, ou neutra, em 2022. Isso vai provocar uma fuga de capitais de países como Brasil, que tem uma situação fiscal muito incerta. E não vamos poder contar com aquele crescimento pujante da China.

2023
Eu já conto com uma retração da economia brasileira ano que vem em torno de 0,5% a 1%. Isso pela dinâmica própria de um ano eleitoral e a situação fiscal. Agora, se houver essa movimentação no mercado externo, o BC terá que terá que ser mais agressivo e isso derrubará o crescimento. E ai sim pode cair muito mais de 1%.

*Edson Rossi e Paula Cristina