Por José de Castro

SÃO PAULO (Reuters) -O mundo passa por profundas mudanças no pós-pandemia, e no meio desse processo o Brasil está parado, avaliou a economista-chefe do Santander no país, Ana Paula Vescovi, para quem um risco preocupante é a inflação se tornar o elemento arbitrador de conflitos internos nos próximos anos.

O contexto atual, segundo Vescovi, contempla uma economia global que deve crescer menos e com taxas de juros mais pressionadas pelo ambiente inflacionário –que, por sua vez, tem como pano de fundo quebra nas cadeias produtivas. Mas as questões vão além.

“O pós-pandemia ainda vai deixar resquícios não só de quebra nas cadeias produtivas –isso a gente arruma lá na frente–, mas de revisão nas próprias cadeias, uma tentativa de torná-las mais próximas, mais locais, menos globais, então (há) perda de produtividade em função disso”, disse Vescovi em entrevista à Reuters na véspera.

Por outro lado, lembrou, o mundo experimenta avanços tecnológicos “importantíssimos”, que necessitam de políticas públicas para que sejam revertidos em bem-estar e crescimento econômico social.

“Nós temos muitos desafios na economia global, e o Brasil parou”, disse. “As reformas que estavam ajustando o próprio ambiente interno… É como se a gente tivesse parado de fazer nosso dever de casa com todas essas mudanças acontecendo”, completou.

Para Vescovi, é preciso se preocupar “bastante” com os desafios das transições tecnológicas e energéticas e também com limitações impostas por restrições que o mundo vai enfrentar –sejam geopolíticas ou ambientais.

“E ao mesmo tempo temos que nos preocupar com os nossos desafios internos. Nós temos o ambiente mais acirrado em termos de mais desigualdades depois da pandemia, dificuldades concretas com o nosso crescimento e escolhas muito difíceis.”

INFLAÇÃO

Num Brasil que produziu ainda mais desigualdades após o início da crise sanitária, a grande preocupação é que o papel das discussões e decisões políticas como norteadoras do país seja ocupado por outro ator.

“Acho que o grande receio, olhando no longo prazo, olhando para a frente, é que a inflação venha com uma ‘ajuda ruim’ para a dificuldade que nós temos de arbitrar conflitos na hora de tomar decisões sobre reformas, dado que temos um ambiente ainda mais desigual, polarizado e voltado para menores consensos”, disse a ex-secretária do Tesouro Nacional.

Ela argumenta que, diante da ausência de reformas, o aumento da carga tributária é visto como solução “quase inevitável” para atender à demanda crescente por gastos públicos, mas que isso esbarra numa sociedade que não apenas não quer elevação de impostos como anseia por redução.

“O contraponto do gasto é a carga tributária. Isso não está claro para a sociedade brasileira ainda. Por quê? Por que ainda temos o chamariz da inflação, que é um mecanismo de financiamento oculto, injusto, mas que funciona muito bem para financiar contas públicas e resolver esses conflitos”, disse.

Num país com uma das maiores inflações do mundo, segundo a economista, tal fenômeno está correlacionado à fragilidade macroeconômica, centrada nas contas públicas, as quais deixaram de contar com a ancoragem fiscal oferecida pelo teto de gastos.

“Nós abrimos mão da nossa âncora fiscal como medida de consolidação antes de terminar essa consolidação. […] O teto de gastos certamente tende a ser revisto pela próxima gestão (federal), seja ela qual for.”

Vescovi considerou haver “conflitos distributivos” por trás disso e que o Brasil precisaria voltar a falar de reformas, embora tenha reconhecido existir pouco clima para tal.

“TREMER BASTANTE”

A ex-secretária do Tesouro avaliou que seria muito positivo que o debate eleitoral incluísse a gestão das contas públicas e como resolver os inflamados conflitos socioeconômicos. Mas até lá o cenário seguirá de menor visibilidade, enquanto o país enfrenta o espraiamento “muito forte” da variante Ômicron da Covid-19.

A nova e recorde onda de casos de coronavírus no Brasil impõe viés baixista à projeção do Santander de expansão de 0,7% do PIB neste ano, com as pressões negativas vindas também das intensas discussões sobre aperto monetário nos Estados Unidos e dos riscos relativos à safra agrícola brasileira, impactada pelo clima.

A taxa de câmbio se apreciou recentemente, mas Vescovi alertou para mudanças de humor entre investidores conforme se acirram as conversas sobre alta de juros nos EUA e o próprio ciclo eleitoral no Brasil ganha ritmo. O banco projeta a moeda norte-americana a 5,70 reais ao fim de 2022.

O dólar à vista recuou 0,61% nesta sexta-feira, a 5,3915 reais, menor valor desde 1º de outubro de 2021. Faltando apenas um pregão para o encerramento de janeiro, a moeda acumula declínio de 3,27% no mês. Nesse ritmo, caminha para registrar a maior queda mensal desde junho de 2021 (-4,77%) e a maior baixa para janeiro desde 2019 (-5,57%).

“Nos últimos pleitos eleitorais em que a gente combinou maior polarização, baixo crescimento e problemas de ordem social, a gente teve de fato muita volatilidade. Então eu acho que este ano vai ser um ano em que a gente vai tremer bastante”, finalizou.

(Edição de Isabel Versiani)

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