Desde o início da pandemia, o Ministério da Saúde vem reduzindo drasticamente o financiamento de leitos de UTI covid. O que acontece em São Paulo exemplifica um problema enfrentado por todos os Estados brasileiros. O governo federal chegou a custear 63% dos leitos dos hospitais paulistas em maio. Esse porcentual foi reduzido para 46,5% em agosto, quando SP atingiu o maior número de leitos ativos. Agora, em fevereiro, no momento em que as infecções estão em alta novamente, o auxílio é de apenas 11,4%. Uma redução de mais de 80% em nove meses.

A queda no apoio do governo federal a Estados e municípios acontece por falta de planejamento orçamentário. No ano passado, o Congresso aprovou a proposta de emenda à Constituição (PEC) que criou o chamado “orçamento de guerra”, destinado exclusivamente a ações de combate à pandemia de coronavírus. O Ministério da Saúde ficou com orçamento de R$ 51,1 bilhões. Ao longo de 2020 esse dinheiro foi utilizado para diversas ações, entre elas o financiamento dos leitos.

Em maio, no pico da primeira onda da pandemia, São Paulo recebeu ajuda para custear 2.060 dos 3.228 leitos ativos de UTI covid. Em agosto, Estados e municípios conseguiram ampliar a rede, mas o Ministério da Saúde não acompanhou o aumento e financiou 2.367 de 5.085 leitos. Em fevereiro, com nova alta de infecções, o número caiu drasticamente para apenas 564 do total de 4.915.

Isso aconteceu porque a PEC criada para enfrentamento da pandemia perdeu a validade em 31 de dezembro, quando terminou o estado de calamidade pública declarado pelo governo. Terminou sem ter a totalidade do valor utilizado. Restaram pouco mais de R$ 5 bilhões. Esse valor foi prometido pelo Ministério da Saúde para custear os leitos em todo o País neste ano.

No sábado, 6, a pasta pediu reforço de R$ 5,2 bilhões ao Ministério da Economia para custear leitos, pagar médicos e profissionais de saúde residentes contratados por prefeituras e equipes de saúde indígena, além de testes de diagnóstico e equipamentos de proteção individual.

O custo de um leito de covid

Um leito de UTI covid custa diariamente R$ 2.500. O Ministério da Saúde ajuda com o pagamento de R$ 1.600. Até o momento, não há relato de fechamento de leitos por falta de dinheiro. Mas há casos como o do Amazonas, em que a rede de saúde não é ampliada a tempo, e pacientes morrem asfixiados.

Dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) apontam que até 20 de janeiro somente 6.835 leitos tinham habilitação do governo federal. Estados e municípios precisam arcar sozinhos com as despesas de outros 13.045 que continuam ativos. Entre a primeira e a segunda onda da pandemia, 409 leitos foram desabilitados.

“O que aconteceu foi que não houve planejamento. O orçamento de 2021 é o mesmo orçamento de 2019. Simplesmente desconsiderou o orçamento de 2020, como se simplesmente a pandemia tivesse terminado dia 31 de dezembro”, disse o presidente do Conass, Carlos Lula.

A falta de verba e planejamento esteve na pauta da primeira reunião da comissão intergestores tripartite, com representantes do Ministério da Saúde (MS), Organização Mundial da Saúde (OMS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e Conass. As quatro horas e oito minutos do encontro estão disponíveis no YouTube.

Em certo momento, Maria Inez Gadelha, secretária do Ministério da Saúde, substituta na pasta de atenção especializada à saúde, alerta para o problema de faltar leitos para atender pacientes na pandemia. Em uma planilha, ela mostra que a projeção para fevereiro é que o Ministério da Saúde arque com o custeio de somente 3.187 leitos. Enquanto isso, há solicitação em espera para 4.020 leitos. “Se não tomarmos medida imediata, certamente vai haver uma crise muito mais aguda”, disse.

A portaria número 3.896, publicada em 30 de dezembro de 2020, disponibilizou R$ 864 milhões para a Saúde em 2021. A tentativa da pasta é utilizar essa verba para custear os leitos de UTI covid em todo o País. O presidente do Conass acredita que essa iniciativa não resolverá o problema.

“É um arranjo que estão tentando fazer porque não tem recurso. Estão tentando utilizar recurso que seria para outra finalidade. Esse dinheiro já está na conta das secretarias. O Ministério não pode se aportar dele agora para financiar leito. Tecnicamente, me pareceu uma proposta que não resolve o problema”, afirma Lula.

Cobrança

Na terça-feira, 2, a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo enviou ofício ao governo federal cobrando a liberação de recursos para leitos de UTI. Segundo a gestão paulista, está pendente a liberação de verba para 4.351 vagas e o Ministério da Saúde só manteve financiamento para manter 11,4% dos leitos para covid no Estado, que sofre com a alta de infectados.

“Estado e municípios terão de colocar, de um dia para o outro, R$ 210 milhões mensalmente para financiar esses leitos que subitamente o ministério deixa de manter”, disse ao Estadão Eduardo Ribeiro, secretário executivo da pasta da Saúde.

O Ministério da Saúde informou que, desde maio, habilitou 4.302 leitos de UTI covid no Estado de São Paulo e investiu o valor de R$ 613 milhões. E que constam somente solicitação pendente para o Estado paulista de 515 leitos, e não 4,3 mil.

Por nota, o governo paulista informou que o “Ministério chegou a sinalizar ao Estado de São Paulo que habilitaria uma relação de dois mil leitos de UTI com estrutura para financiamento por 12 meses. Esse montante estaria contemplado num total de cinco mil leitos por todo o País para que o governo federal empregasse um saldo de R$ 5 bilhões no SUS do Brasil… Mas o governo federal não honrou esse compromisso nem com SP nem com qualquer outro estado do Brasil.”

Segundo o Conass, a reclamação feita pela secretaria Estadual da Saúde de São Paulo é recorrente. “Há cobranças de todas as secretarias estaduais, sem exceção. Não dá para cortar o orçamento de guerra sendo que a guerra ainda não acabou. Pelo contrário, a pandemia está em fase bem aguda. Precisava existir uma previsão orçamentária sob pena de faltar leito para a gente enfrentar a doença”, diz Lula.

Leitos x curva epidemiológica

O governo federal diz que entre os critérios para habilitação, estão a curva epidemiológica do coronavírus na região, além da estrutura da unidade intensiva e do corpo clínico para atuação em UTI. O valor da habilitação dos leitos é pago pelo Ministério da Saúde em parcela única e tem validade por 90 dias – podendo ser prorrogável.

Carlos Lula, que também é secretário da saúde do Maranhão, contou que o Estado não possui mais leitos habilitados pelo Ministério da Saúde, mesmo com a taxa de ocupação em torno de 80%. O gestão estadual mantém atualmente 291 leitos UTI covid. A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), por meio de nota, informou que 338 leitos de UTI covid não foram habilitados. Destes, 185 já foram encaminhados ao Ministério da Saúde e aguardam avaliação técnica.

O economista da ESPM-SP Leonardo Trevisan reclamou da falta de planejamento do governo federal. “Parece uma brincadeira falar de orçamento agora. Mas não temos ainda nem o relator do orçamento. Estamos começando do zero. É como se estivéssemos em agosto ou setembro do ano passado pensando no próximo ano. Só que estamos em fevereiro. Essa realidade é difícil de explicar”, comentou.

A disponibilidade orçamentária mais recente do governo federal é de dezembro. “Os planos de imunização, seja para aids, sarampo, qualquer coisa, são gestados seis, oito meses antes do início. Com discussão orçamentária com capilaridade. O dinheiro precisa chegar lá embaixo, não é instantâneo” acrescentou Trevisan.

Para Lula, também não há mágica a ser feita a não ser um planejamento orçamentário. “A gente sabe que o dinheiro não vai sair do nada. Ano passado já foi um ano com pauta fiscal muito complicada. Mas é importante salientar que a saúde tem que ser prioridade. Teriam que prever um crédito extraordinário para o Ministério da Saúde, para habilitação de leitos. A não ser que a gente diga que tudo bem faltar leito no SUS.”