Dinheiro. E poder, muito poder. De um lado, as corporações tecnológicas de atuação global. De outro lado, os países, ainda perplexos e sem saber como fazer para controlá-las (e taxá-las) o máximo possível. A briga promete. Traduzindo em números: apenas as quatro gigantes agrupadas sob o acrônimo Gafa (Google, Apple, Facebook e Amazon) tiveram em 2018 receitas somadas de US$ 687 bilhões, o equivalente ao PIB conjunto de Chile, Croácia, Hungria e Portugal. O valor de mercado das quatro é de US$ 2,8 trilhões. Três delas nasceram dos anos 90 para cá. A mais jovem é uma adolescente. O Facebook tem 15 anos. A mais velha é um jovem adulto. A Apple, que fará 43 anos. Num espaço muito curto de tempo, a nova economia tornou rapidamente obsoleta a legislação tributária. E esse cenário passou a despertar, aos olhos de países e organismos internacionais, certa animosidade. Ou apetite. E um ataque verdadeiramente efetivo acaba de nascer.

Na última semana de janeiro, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) decidiu “intensificar esforços para chegar a uma solução global sobre a melhor forma de tributar empresas multinacionais em uma economia digital”. Com prazo de validade: 2020. Na prática, é um cerco que começa a se fechar. Liderados pelo G-20 (grupo das maiores economias globais) e a OCDE, “os países concordaram em explorar soluções que atualizem princípios tributários para uma economia do século 21”, disse Pascal Saint-Amans, diretor do Centro para Política e Administração Tributária da OCDE. A versão final do acordo deve ser adotada por 127 países.

Cálculos da OCDE indicam que manobras tributárias de grandes corporações corroam globalmente receitas fiscais entre US$ 100 bilhões e US$ 240 bilhões por ano, o que representa de 4% a 10% do que é recolhido das empresas no mundo todo. A organização chama essa estimativa de “extremamente conservadora”. Não se trata de evasão. A legislação tributária nasceu num mundo com empresas estabelecidas nos próprios quintais, ou fazendo negócios de maneira muito controlável quando atuavam em mercados alhures. Assim, tributar a produção de bens e serviços era, de certa forma, uma atividade geográfica e analógica. Hoje, o anúncio de uma companhia aérea ou site de hospedagens é vendido pelo Google num país e aparece na tela de usuários de qualquer canto do planeta. “As empresas podem estar fortemente envolvidas na vida econômica de diferentes jurisdições (e países) sem nenhuma presença física significativa (nesses lugares)”, diz Saint-Amans, da OCDE. Isso levou a uma distopia fiscal.

Poderosos na mira: Em sentido horário, Mark Zuckerberg (Facebook), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple) e Jeff Bezos (Amazon) (Crédito:Arquivo/Istoé Dinheiro)

Não só as quatro gigantes tecnológicas, mas também empresas como Uber ou eBay, fazem tudo o que podem para minimizar o pagamento de impostos. O que pode ser questionável, mas está dentro da lei, diga-se. Para isso, utilizam serviços das mais avançadas técnicas de engenharia jurídico-contábil para encontrar lacunas nas legislações tributárias de qualquer esquina do mundo. E vão recolher onde pagam menos. A ideia geral levantada pela OCDE é conseguir uma taxação mais agressiva dessas gigantes, e outras empresas da economia digital, nos países onde elas realizam suas atividades e lucros, mas nem sempre pagam impostos, ou pagam pouco, por não terem sede ou grandes operações, e realocam seus lucros em paraísos fiscais.

MANOBRA DIGITAL Para comercializar produtos e serviços na Europa, Gafa e outras empresas colocam suas sedes contábeis em lugares com alíquotas de tributação mais baixas, como a Irlanda, que tem imposto de 12,5%, enquanto a média no restante da UE é de 20% a 25%. Em vez de pagar 19% na Alemanha ou 20% na França ou Reino Unido. Relatório da UE diz que o nível de impostos médio pago por empresas tradicionais é de 23%, contra 9% em média para corporações digitais. A primeira tentativa de ataque aos cofres do Gafa e congêneres havia sido pensada no âmbito da União Europeia, que no fim do ano passado discutiu uma taxa única sobre o faturamento das gigantes tecnológicas.

A ideia original, francesa, era cobrar 3% em cima da receita das empresas de web que superassem 750 milhões de euros de receita mundial ou 50 milhões de euros na web. O plano não avançou porque o projeto precisaria de aprovação unânime dos 28 países que integram a UE, mas Dinamarca, Irlanda e Suécia, por exemplo, manifestaram-se de forma contrária. A oposição desses países embutiu o temor da ira da Casa Branca, de Donald Trump, que olha para os esforços da UE para garantir o que os europeus chamam de “taxação justa” das gigantes da internet como um ataque às empresas americanas.

Novas regras: Hammond (acima), chanceler inglês: taxação a partir de abril de 2020. Saint-Amans, da OCDE: o planejamento tributário virou core nestas empresas mais que a criação de bens e serviços

CADA UM POR SI Sem acordo unificado, países europeus passaram a adotar soluções individualizadas. A mais recente veio do fisco francês, que em dezembro conseguiu fazer a Apple concordar em pagar 500 milhões de euros referentes a impostos entre 2008 e 2017. Parece muito? Somente na Europa as vendas anuais passam dos US$ 54 bilhões. O chanceler britânico, Philip Hammond, disse em novembro, que o Reino Unido prepara uma taxação a empresas digitais que deve entrar em vigor em abril de 2020 e arrecadar 400 milhões de libras (US$ 522 milhões).

Outra dezena de países da UE estuda solucões domésticas. Por isso Alemanha e França, principais interessados numa regra unificada, ao perceber que a UE não teria uma proposta única, viram na OCDE a chance de transformar a briga em causa global. Como não existe almoço grátis, se as gigantes da tecnologia driblam a questão tributária, os países vão buscar dinheiro em outra ponta: no bolso do cidadão comum, por meio de mais impostos sobre salários e circulação de mercadorias e serviços. “Planejamento tributário se tornou central nos principais modelos de negócios”, diz Saint-Amans, da OCDE. “Mas a criação de valor deve ser o ‘core business’ da indústria, e o planejamento tributário deveria ser apenas uma atividade de apoio.”

A batalha envolve tanto dinheiro que há também muito pessimismo sobre a eficácia do que a OCDE começa a desenhar. As críticas partiram do mundo político, amalgamado em lobbies. As mais pesadas vêm dos Estados Unidos. A proposta da OCDE, segundo os americanos, tenta obter uma base tributária sobre empresas que eles chamam de genuinamente nacionais. Para Mike Devereux, especialista em tributação da Universidade de Oxford, “o sistema de impostos internacionais convida os governos a desestabilizá-lo, competindo uns com os outros pela receita fiscal e, possivelmente, para tentar beneficiar suas próprias empresas domésticas.” E isso levou a “pelo menos 30 anos de reduções graduais nas taxas globais de tributação do lucro”. A boa e velha guerra fiscal tão conhecida entre cidades e estados brasileiros, mas numa escala global.