A criação de um Fundo de Investimento Imobiliário (FII) para administrar os imóveis do governo paulista representa a financeirização dos terrenos públicos. A avaliação é de pesquisadores do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). A professora e urbanista Raquel Rolnik, que coordena o laboratório, aponta que a medida inverte a lógica do interesse social na ocupação do espaço urbano. “O destino daquele lugar, daquele terreno público, vai ser definido pela hipótese da rentabilidade máxima financeira, e não pela hipótese da necessidade da cidade”, apontou.

O edital que vai contratar o consórcio responsável pela administração e operação dos 267 imóveis iniciais da carteira do fundo foi publicado no último dia 24. O prazo para envio das propostas é de 30 dias, e o pregão presencial será realizado no dia 22 de setembro. O governo estadual espera faturar R$ 1 bilhão com a venda das unidades. Do total de imóveis do portfólio, 186 estão na capital paulista, sendo 75% nas proximidades da Avenida Jornalista Roberto Marinho, antiga Avenida Águas Espraiadas, que foi alvo de uma operação urbana consorciada, definida pela Lei nº 13.260 de 2001.

“Muitas pessoas foram removidas desses locais e estão vivendo penduradas em bolsa aluguel, em condição absolutamente precária, mas não tem terreno para construir moradia para elas”, criticou Raquel Rolnik. Para ela, as áreas poderiam ainda servir como outras utilidades públicas, como parque, praça, escola, mercado, posto de saúde ou equipamentos de lazer. “Terrenos bem localizados não podem servir para usos públicos? Como eles têm muito valor, então [a lógica é que] não podem ter uso público, porque isso não tem valor. É um absurdo. O que mais a gente tem problema e tem demanda é nossa necessidade de uso de terrenos bem localizados”, acrescentou.

O presidente da Companhia Paulista de Parceria (CPP), Mário Engler, justifica que foi feito um estudo e que essas políticas públicas podem ser atendidas por meio dos imóveis restantes. De acordo com o governo estadual, o Poder Público tem cerca de 5 mil unidades. “Ainda tem muito imóvel no estado para fazer projeto de habitação popular, para fazer outras coisas”, disse. Segundo ele, que os imóveis que deverão ser vendidos já estavam destinados para isso. “A decisão de venda já existia antes, mas não tinha como ser implementada. A mudança não é de objetivo, é só de meio.”

Financeirização

De acordo com Engler, as cotas do fundo imobiliário poderão ser usadas também como garantias de parcerias público-privadas (PPPs) do governo estadual. “Dar garantia de hipoteca de imóvel não é um negócio que funciona na prática, não é uma garantia que tem liquidez, o que já não acontece, na mesma medida, com as cotas do fundo”, afirmou. Para ele, o fundo imobiliário pode ajudar na estruturação dessas garantias. “Até hoje, as [garantias] que a CPP deu foram dinheiro. Não é a forma mais eficiente. Ao criar um ativo que atenda às condições necessárias para ser lastro de garantia, você está sendo mais eficiente nessa estruturação.”

Ao criar um fundo imobiliário, o imóvel deixa de ser um bem físico para existir por meio de cotas financeiras. “Com isso, você desmaterializa os imóveis. Não precisa vendê-los, basta transacionar no mercado financeiro”, afirmou Raquel Rolnik. Ela destacou que essa já é uma prática comum no mercado privado, mas que, ao ser transportada para o governo estadual, inverte as prioridades do Poder Público. “Os imóveis públicos vão ser usados para gerar rentabilidade máxima privada, para remunerar esses cotistas, para gerar dinheiro para o fundo garantidor das parcerias público-privadas, para garantir a remuneração e o lucro dos parceiros privados que entraram nas PPPs.”

Levantamento

O LabCidade trabalha agora no levantamento dos imóveis listados como parte do fundo para verificar se algum deles está ocupado. “É uma hipótese ainda, porque temos que checar. Estariam colocando no fundo imobiliário terrenos ocupados com gente que não tem outro lugar onde morar”, informou a coordenadora do laboratório. A pesquisa será feita com as unidades da capital paulista. Para ela, não pode haver a remoção dos ocupantes sem que tenha sido pensada uma política associada de reassentamento.

Essa hipótese parte do trabalho do pesquisador Pedro Henrique Mendonça que, ao estudar os fundos garantidores das PPPs, identificou que pelo menos um imóvel do governo estadual vendido para compor estse fundo estava efetivamente ocupado. A situação ocorreu no cruzamento da Rua Jean Peltiel com a Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, também na zona sul da capital, nas proximidades da Operação Águas Espraiadas. “Fomos lá in loco e existiam pessoas morando nesse terreno que tinha sido vendido. É uma possibilidade. E o estado não sabia”, disse.

O presidente da CPP apontou que alguns imóveis estão sendo usado pelo governo estadual, como escola e hospital, mas que a transferência já estava prevista antes de disponibilizar a unidade no fundo. “É um número muito pequeno. Já vinha sendo tratado no âmbito do estado a racionalização da localização das instalações de algumas repartições públicas.”  Ele destacou que um dos critérios usados para escolha da composição do FII era que os imóveis estivessem desocupados. “A grande maioria não está ocupada por ninguém”, declarou Engler.