Na segunda-feira, às 6h15, um homem de 1,81 metro de altura, de peso inconfessável, cabelos acinzentados, cigarro entre os dedos, deixou o hall do Hotel Sol Ipanema no Rio de Janeiro. Na saída, olhou para um horizonte nublado. Ele não estava propriamente preparado para uma manhã ensolarada. Vestia um terno austero preto, de risca de giz. Mais sombrio ainda era o carro que o conduziria até o prédio da Bolsa de Valores do Rio: uma veraneio, azul escura, com sirenes no teto. A viatura mais lembrava um camburão. Também não estava tranqüilo. Reclamava de um calor incomum, que só ele sentia, apesar da brisa do dia e do ar condicionado ligado. Outro cigarro, mais baforadas e o homem explodiu com o motorista que não conseguia achar a entrada para autoridades . ?Liga essa p… de sirene.? O motorista obedeceu, deu ré no meio da Praça XV, um movimentado nó viário no centro do Rio, para logo desembarcá-lo na porta da Bolsa. Foi assim que Carlos Eduardo de Freitas, diretor de Finanças Públicas e Regimes Especiais, encarregado da venda do Banespa, chegou ao local do leilão. Seu nervosismo e ansiedade refletiam outra impaciência ? a do próprio governo. Na tarde de sexta-feira, 17, a equipe econômica tremeu. O Banco Central foi informado pelo próprio presidente do Banco Itaú, Roberto Setubal, que a sua instituição, a segunda maior em ativos, não participaria do leilão do Banespa. ?Que conversa esquisita?, comentou Fraga, preocupado.

A desistência do Itaú transformou-se em segredo de Estado para o governo. O silêncio em torno dela era uma garantia de um bom preço para o banco paulista. Revelá-la era o mesmo que jogar contra o patrimônio público. Em última análise, representaria a venda do Banespa por um valor muito próximo do mínimo. A simples presença do Itaú provocaria uma disputa mais agressiva entre os competidores nacionais, principalmente o Bradesco, primeiro colocado no ranking, que, em hipótese alguma, admitia perder o posto para o Itaú. O governo viveu o drama intramuros sem dar sinais de fragilidade. Àquela altura, sabia-se que se a notícia vazasse o leilão poderia virar um grande fiasco. Freitas, logo após um almoço relâmpago no restaurante Panela Mágica, também foi informado da desistência. Entre uma baforada e outra, procurou manter-se gelado. ?Existe segredo de médico, segredo de padre e de advogado. Mas a ausência do Itaú teria um impacto que jogaria fortemente contra o preço?, disse Freitas. E assim passou o fim de semana. Em silêncio de economista do governo.

Anderson Schneider

A equipe do governo espera apreensiva a abertura dos envelopes. Tensão durou pouco

Nos dias que antecederam o leilão, ele já tinha colecionado uma série de notícias ruins. Os bancos estrangeiros começaram gradualmente a pular fora. O BankBoston, depois de estudar os números do Banespa, chegou à conclusão que a taxa de retorno do banco não compensava o investimento. O BBVA também achou que era fria e desistiu. É bem verdade que os dois não freqüentavam as reuniões com assiduidade. Nem o HSBC demonstrou o menor interesse. A surpresa foi o Citibank que, durante as reuniões, fez mais perguntas e levantou mais dúvidas que o Santander. Ainda assim, o Citi avaliou que era melhor não participar do leilão. ?Foi uma surpresa, pois eles eram muito interessados?, disse Freitas. Sobrou apenas o Banco Santander, que adotou publicamente a linha de desvalorizar. Para o público externo. apresenta va dados do seu departamento de pesquisa desqualificando o Banespa. Nas reuniões com o governo, comportava-se como dos maiores interessados em adquirir o banco paulista. E para os concorrentes dizia que não participaria.

Dúvidas. Os banqueiros também tiveram muitas dúvidas. Foram 30 mil ao todo. Suas instituições tinham medo de estarem comprando gato por lebre. Antes mesmo de Itaú e Safra desistirem, uma outra controvérsia mexeu com os nervos de Freitas. Os bancos exigiam acesso às carteiras individuais de clientes do Banespa. Queriam também o plano de aposentadoria que contemplava os funcionários do banco admitidos até maio de 1995. Sobre a primeira exigência, Freitas disse que não seria aceita porque feria a lei do sigilo bancário. Como os bancos continuaram insistindo, o diretor propôs uma solução heterodoxa, ainda que dentro da lei. Os chefes de fiscalização interna e externa do BC fariam uma exposição secreta para os interessados, mostrando de forma global a real situação das carteiras, sem abri-las ou nominá-las individualmente. Um dos bancos nacionais insistia em ver as carteiras, mas nada conseguiu. A grande maioria se mostrou satisfeita. Na ocasião foram fornecidas também explicações sobre a situação das aposentadorias.

Para resolver o imbróglio financeiro, Freitas tinha na retaguarda Armínio Fraga que, por sua vez, mantinha-se em linha direta com Pedro Malan, ministro da Fazenda, e mais ainda com o presidente Fernando Henrique. Do quartel-general de Freitas, montado no gabinete no 21º andar do banco, contava com o consultor Gustavo Matos e com Geraldo Pereira, chefe-adjunto da dívida pública, responsável pela parte técnica da privatização. Ali, discutia-se também soluções para o nó jurídico provocado pelas 60 liminares contra a privatização. O governo conseguiu derrubá-las uma a uma através de uma articulação que envolveu mais de 60 advogados, comandados pelo Advogado Geral da União, Gilmar Mendes. Na verdade, o governo ganhou a guerra judicial quando baixou a MP do Banespa, a medida provisória 1984, permitindo que o presidente do Supremo, Carlos Veloso, julgasse liminares de instâncias mais baixas, abreviando todos os trâmites. O procurador Luiz Francisco avalia que, ao fim e ao cabo, a MP acabou desequilibrando o jogo a favor do governo. Na véspera do leilão, duas outras liminares foram derrubadas pelo STF. Na segunda-feira, no interior da Bolsa de Valores do Rio, Freitas viveu muitos medos. O primeiro foi um susto. A exigência da leitura de uma liminar antes do leilão, advertindo que existem ações na Justiça que podem levar o banco de volta ao berço esplêndido do estatismo. Outro foi o temor de que Unibanco e Bradesco, percebendo a ausência do Itaú, acabassem fugindo do leilão, como noivo que abandona a noiva no altar no dia do casamento. Os medos se encerraram com a abertura do envelope do Santander. O cheque de R$ 7,05 bilhões, que serão utilizados para abater a dívida pública, exorcizou todos os fantasmas e dimensionou o tamanho da ausência do Itaú em R$ 4,95 bilhões ? a diferença entre o maior preço, ofertado pelo Santander, e o segundo maior, proposto pelo Unibanco.

“EU SABIA”

Em entrevista exclusiva à DINHEIRO, o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, disse que soube da desistência do Itaú na sexta-feira anterior ao leilão.

DINHEIRO ? Como foi a ação do BC no leilão?
FRAGA ? Fizemos um trabalho preliminar de seleção e os candidatos eram todos com bons pré-requisitos: capital, competência e reputação. O Santander foi muito agressivo e demonstrou um compromisso de longo prazo com o Brasil, o que é muito bem-vindo.

DINHEIRO ? E a saída dos estrangeiros?
FRAGA ? É difícil saber. Não tive a chance de conversar com nenhum deles em profundidade. Eles me ligaram e eu escutei breves relatos. A minha impressão é que foram decisões fundamentalmente definidas por uma estratégia diferente da do Santander. O ambiente internacional, com uma certa turbulência, também não ajudou.

DINHEIRO ? A ausência do Itaú interferiu?
FRAGA ? Creio que sim. O fato pode ter induzido o Bradesco a ser menos agressivo. Corre essa versão no meio dos analistas do setor. Mas agora pouco importa. No final, o leilão foi bom, competitivo e teve bom preço. Para nós, concluiu um processo que foi penoso.

DINHEIRO ? Quando Roberto Setubal ligou para o sr.?
FRAGA ? Acho que na sexta.

DINHEIRO ? E o que o sr. disse?
FRAGA ? Respondi que respeitava a decisão dele. Que era uma opção de cada um. Fiquei um pouco triste de não ter mais um concorrente de peso no leilão, mas entendo.

DINHEIRO ? Por que o BC comprou dólares na semana passada?
FRAGA ? O que aconteceu foi uma grande surpresa para o mercado, que não estava esperando uma entrada repentina de US$ 3,7 bilhões. E isso causou um desequilíbrio, uma falta de liquidez que ameaçava criar um pequeno pânico, até um certo corner. E nós temos como política, em situações extremas assim, intervir. Elas são pouco freqüentes. Mas casou também com uma vontade nossa de comprar alguns dólares em preparação aos nossos compromissos no ano que vem. Uma espécie de medida defensiva.