Quem passa pela Rodovia Marechal Rondon, rumo ao interior de São Paulo, enxerga facilmente a fábrica de motores da japonesa Toyota no topo de uma colina, nos arredores do município de Porto Feliz. A unidade, a única da empresa dedicada a produzir propulsores fora do Japão, já enfrentou altos e baixos, apesar da pouca idade. Como manda a cartilha nipônica, foi cuidadosamente planejada há dez anos. Sua inauguração, no entanto, ocorreu apenas em 2016, no auge da mais grave recessão econômica da história do País. “Atravessamos um percurso selvagem nos últimos quatro anos”, disse à DINHEIRO o americano Steve St. Angelo, presidente da Toyota na América Latina e no Caribe.

David Powels, CEO da VW: A montadora alemã, uma das mais afetadas pela crise, prepara o lançamento de 20 carros até 2020 (Crédito:Claudio Gatti)

A declaração do executivo, com sorriso no rosto, não se deu em um contexto de reclamação, mas, sim, de alívio. Na segunda-feira 26, ao lado dos principais executivos da companhia na região, St. Angelo anunciou um investimento de R$ 1 bilhão no País. “Em vez de ficar olhando para trás, agora precisamos trabalhar pelo futuro. O Brasil está de volta”. Esse megainvestimento da Toyota, que se soma a outro de R$ 600 milhões para ampliar a produção de motores em Porto Feliz, anunciado no final do ano passado, será destinado ao lançamento de um novo modelo, o Yaris, que chegará às concessionárias no segundo semestre de 2018. A ofensiva da maior montadora do mundo no mercado brasileiro simboliza a virada de página da crise na indústria automobilística nacional. Mas não é a única boa notícia.

Nas últimas semanas, as montadoras anunciaram, em um claro movimento de restauração do otimismo, mais de R$ 4 bilhões de investimentos para os próximos anos. A alemã Volkswagen também definiu um aporte de R$ 2,6 bilhões para iniciar a renovação de seu portfólio. Já a Renault vai destinar R$ 750 milhões para duas unidades do seu complexo industrial em São José dos Pinhais, no Paraná, uma de injeção e outra de motores. Ela também lançou, em agosto, o carro popular Kwid. Até as montadoras que deixaram o Brasil estão de olho na retomada do consumo. A sul-coreana Ssangyong, que hoje faz parte do grupo indiano Mahindra, vai tentar pela terceira vez seu lugar ao sol no mercado brasileiro.

Carlos Zarlenga, CEO da GM: do plano de R$ 13 bilhões de aportes da GM para o Brasil até 2020, ainda restam R$ 4,5 bilhões para a modernização de suas fábricas (Crédito:Felipe Gabriel)

Dois anos depois de deixar o País, promete lançar quatro veículos em 2018. “Nos últimos anos, a Ssangyong passou por processos de modernização de suas unidades fabris e também de ocidentalização de seus veículos. O Tivoli e o XLV já foram premiados na Europa, o New Rexton foi apresentado recentemente em Paris, enquanto o Korando e o Actyon Sports passaram por importantes reestilizações”, afirma Gerson Pittorri, presidente da Ssangyong Brasil. “Com essa mudança de posicionamento da marca, esperamos conquistar o consumidor brasileiro.” A meta da empresa é vender 3 mil unidades em seu primeiro ano no Brasil e chegar a 50 endereços até o final de 2018. A marca terá um centro de distribuição de peças em Salto, interior de São Paulo.

Todos esses aportes, somados a outros investimentos já anunciados anteriormente, alcançarão mais de R$ 9 bilhões até 2020. A GM, por exemplo, tem ainda R$ 4,5 bilhões para gastar de seu plano de R$ 13 bilhões para o período entre 2014 e 2020. Depois de renovar toda a sua linha de produtos em 2016, agora ela pretende modernizar as suas fábricas, com tecnologias mais avançadas e a introdução de conceitos novos de manufatura. A Fiat Chrysler Automobiles (FCA), por sua vez, sob o comando do executivo Stefan Ketter, anunciou, nos últimos meses, em plena crise, os modelos Fiat Mobi, Argo e Toro, além do Renegade e do Compass, ambos da marca Jeep. Os investimentos fazem parte de um ciclo de R$ 21,9 bilhões, que se encerra neste ano, na construção de fábricas, modernização de plantas industriais e desenvolvimento de produtos e da cadeia de produção. O mais importante deles foi a abertura do Polo Automotivo Jeep, na cidade pernambucana de Goiana, num aporte de R$ 11,2 bilhões.

Sob qualquer ângulo que se olhe, a indústria automotiva no Brasil está saindo de uma de suas piores crises. Há quatro meses consecutivos, as vendas de automóveis apresentam avanços consistentes na comparação com o mesmo período de 2016. Em setembro, a média diária de emplacamentos superou 9 mil unidades, uma alta de 22% em relação ao mesmo mês do ano passado. “A queda nas taxas de juros e as boas notícias na retração do desemprego aumentaram a confiança do consumidor”, afirma Alarico Assumpção Júnior, presidente da Fenabrave, a federação dos distribuidores de veículos. A base de comparação, no entanto, ainda é baixa. No ano passado, as vendas de veículos novos recuaram ao menor patamar desde 2012. A falta de negócios levou as fábricas a atingirem ociosidade de 52% e gerou a demissão de milhares de trabalhadores, dispensados ou afastados do trabalho, no regime chamado de layoff. Em 2016, a produção de carros no País somou 2,07 milhões de unidades, quase 1 milhão de veiculos a menos do que em 2014.

Seja como for, a retomada é visível, não apenas em vendas, mas também em produção. Em agosto deste ano, foram fabricados 260 mil veículos, segundo a Anfavea, a associação nacional das montadoras. Há um ano, em setembro de 2016, foram apenas 171 mil. “As nossas novas previsões demonstram que a indústria caminha para um cenário de retomada, mesmo se considerarmos que a base de comparação de 2016 é muito baixa”, diz Antonio Megale, presidente da entidade. “O que precisamos agora é de estabilidade no quadro econômico para que consumidores e investidores aumentem a confiança e o País como um todo entre em uma rota de aceleração da atividade econômica.”

Stefan Ketter, CEO da FCA: A Fiat, chefiada há dois anos pelo executivo, está finalizando um ciclo de R$ 21,9 bilhões (Crédito:Rafael Bandeira / Exclusiva!BR)

No topo da lista das empresas mais afetadas no período de intensa desaceleração, a Volkswagen é um bom exemplo desse reaquecimento. Pouco a pouco, o vaivém entre as linhas de montagem da gigante alemã começa a lembrar a movimentação dos dias pré-crise. Na fábrica de Taubaté, no interior paulista, onde são produzidos os modelos Gol, Up! e Voyage, a empresa anunciou que irá suspender o uso do Programa Seguro Emprego (PSE), do governo federal. Dentro da iniciativa, os 4 mil funcionários da instalação vinham trabalhando com uma redução de 25% em suas jornadas. Há pouco mais de um mês, a Volkswagen já havia suspendido o PSE em sua unidade em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista. Inicialmente, a previsão era encerrar o programa em outubro. Desde então, a fábrica está operando cinco dias por semana.

Até o fim do ano, a projeção é reativar, gradativamente, a produção em três turnos no local, o que não acontecia desde 2015. Um dos motores dessa recuperação é o novo Polo, hatch premium que chega às concessionárias em novembro, com quatro versões, na faixa de preço de R$ 49.990 mil a R$ 69.190 mil. “O lançamento reforça nosso otimismo no futuro do Brasil e marca a maior ofensiva de produtos da nossa história no País”, diz David Powels, presidente da Volkswagen para o Brasil e a América do Sul. Com o carro, a montadora dá início a uma ampla renovação de seu portfólio, que incluirá outros dezenove modelos até 2020. Parte do investimento de R$ 2,6 bilhões na unidade para a produção do Polo, o sedã Virtus é o próximo da lista e será lançado no primeiro trimestre de 2018.

Luiz Pedrucci, CEO da Renault: A marca francesa lançou em agosto o compacto Kwid, que já é o segundo carro mais vendido do Brasil, atrás apenas do Onix, da GM (Crédito:Rodolfo Buhrer)

A chegada do novo Polo também reforça as exportações, outro componente que está imprimindo um novo ritmo na produção no setor. No cronograma da Volkswagen, os modelos produzidos na fábrica de São Bernardo do Campo chegarão a sete países da América do Sul até março, nessa ordem: Paraguai, Argentina, Chile, Equador, Peru, Colômbia e Uruguai. Assim como em outras montadoras, desde o início da crise, o mercado externo tem sido uma válvula de escape para a indústria automotiva brasileira. A Volkswagen vem se destacando nessa frente.

De janeiro a agosto, a empresa exportou 113,2 mil carros, um crescimento de 62% sobre igual período, um ano antes. O campeão de vendas no período foi o Gol, com 55.527 unidades embarcadas. Na Toyota, exportar também tem sido uma boa saída para contornar o mercado interno desaquecido. “Já exportamos do Brasil para a Argentina, Paraguai, Uruguai, Peru, Honduras e Costa Rica”, diz Rafael Chang, presidente da Toyota Brasil. “E estamos conversando para vender o Corolla para a Colômbia, a partir do próximo ano.” A Hyundai também aposta no mercado externo e anunciou, na terça-feira 26, que irá exportar a SUV Creta para o Uruguai. A marca investiu R$ 415 milhões na fábrica de Piracicaba (SP).

Confiança retomada: para a Fenabrave, presidida por Alarico Assumpção, a queda nas taxas de juros e do desemprego atraem os consumidores (Crédito:Divulgação)

Tudo isso só é possível devido ao sentimento geral de que o pior da crise econômica ficou no retrovisor. O dólar mais valorizado tornou a produção para o exterior mais competitiva. E facilitou às estrangeiras investirem, para modernizar as linhas de montagem, de forma que os carros brasileiros atendam a padrões internacionais de atualização tecnológica e se tornem atrativos, em especial, na América Latina. No fronte interno, a estrada também parece mais limpa. “A queda nas taxas de juros e as boas notícias na retração do desemprego aumentaram a confiança do consumidor”, afirma Alarico Assumpção Júnior, presidente da Fenabrave, a federação dos distribuidores de veículos. Ao mesmo tempo, os clientes começam a ter mais acesso a empréstimos bancários e sentem mais segurança em seus empregos.

Gerson Pittorri: a Ssangyong volta ao Brasil, depois de dois anos, com planos de abrir 50 concessionárias em 2018 (Crédito:Divulgação)

A expectativa geral se apoia no programa Rota 2030, do governo federal, que vai definir as regras para mais de 10 anos de políticas para o setor e precisa de uma rápida definição. Afinal, ele vai substituir o Inovar-Auto, que chega ao fim em dezembro deste ano, e foi condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) por incentivos considerados ilegais para a produção nacional. Um dos motivos para o atraso na divulgação, inclusive, é a dificuldade de integrantes do governo em estabelecer políticas que não levem a novas punições na Organização Mundial do Comércio (OMC). “Haverá novidades nas próximas semanas”, diz Igor Calvet, secretário de desenvolvimento e competitividade industrial do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

“O programa vai ter três pilares: induzir o desenvolvimento tecnológico do País, a eficiência energética e a segurança veicular.” Mas a maior preocupação da indústria está em que o Brasil tenha regras mais perenes que tornem os investimentos previsíveis no longo prazo. “A indústria está voltando a crescer e o Rota 2030 precisa definir os parâmetros e as regras do jogo, para que as montadoras possam direcionar seus investimentos”, afirma Paulo Roberto Garbossa, diretor da consultoria ADK Automotive. “E o setor precisa ter a certeza de que essas regras não serão alteradas no meio do caminho”. A estabilidade da regulação, somada a um mercado em recuperação, serão uma garantia de que o clima mais relaxado entre os executivos da Toyota, e de suas principais concorrentes, não será passageiro.


A novela sem fim do Dieselgate

Há duas semanas, a Volkswagen foi condenada, em 1a instância, a pagar um total de R$ 1,1 bilhão a 17.057 proprietários da picape Amarok, no Brasil. Fruto de uma ação movida pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e Trabalhador (Abradecont), a indenização é mais um desdobramento do Dieselgate, como ficou conhecido o escândalo de emissões dos motores a diesel da empresa. O caso veio à tona em setembro de 2015, quando a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos descobriu um software instalado nos veículos da marca, que alterava os resultados de testes de emissão de gases poluentes. No Brasil, os motores em questão estavam restritos à picape Amarok, vendidas no País entre 2009 e 2013.

A decisão do juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, da 1a Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, definiu o pagamento de R$ 54 mil, por danos materiais, e de R$ 10 mil, por danos morais, a cada dono do veículo afetado pelo problema. Ele afirmou que os consumidores “foram vítimas de propaganda abusiva e método comercial desleal, visto que o público não sabia o real potencial poluidor do automóvel.” No mercado brasileiro, a Volkswagen já havia sido multada em R$ 50 milhões, pelo Ibama, e em R$ 8,3 milhões, pelo Procon. Em nota, a Volkswagen informou que irá recorrer da decisão, que considera incorreta. A montadora também ressaltou que já havia recorrido da multa do Ibama, “uma vez que medidas técnicas provaram que o software não altera os níveis de emissão da Amarok comercializada no mercado brasileiro.” E reforçou que convocou um recall desses modelos, que teve início em maio deste ano.