“Acho que a fome voltará”, diz Maria Goncharova, sobrevivente da fome dos anos 1930, que agora teme reviver o horror em meio às acusações do governo ucraniano de que a Rússia voltou a usar comida como arma.

A senhora de 93 anos guarda tudo por medo da escassez. Ela ficou marcada para sempre por Stalin, que provocou milhões de mortes ao coletivizar as terras ucranianas, na época da União Soviética.

Desde a invasão russa da Ucrânia, ela escuta os mísseis sobre sua pequena casa de madeira azul, no vilarejo de Cheremushnaya, na região de Kharkiv (leste).

Naquela época, “sobrevivíamos cozinhando batatas e farinha” todos os dias, diz Goncharova, que mora com três galinhas e tem uma pequena horta.

Sua pensão por invalidez de 2.000 hryvnias (68 dólares) só lhe permite subsistir contando moedas e cozinhando em forno a lenha.

Os russos “já roubaram muitos grãos de nós e são capazes de nos tomar tudo”, comenta à AFP, fazendo o sinal da cruz.

– Genocídio –

Há temores de que o Holodomor, termo ucraniano que denomina “o extermínio pela fome” dos camponeses entre 1932 e 1933 pelo regime soviético, que causou vários milhões de mortes segundo cálculos de historiadores, volte.

Desde que o exército do presidente russo, Vladimir Putin, bombardeou suas reservas de grãos, os ucranianos estão indignados.

Para a Ucrânia, essa palavra é sinônimo de genocídio, orquestrado na época para quebrar os sonhos de independência.

“A comida foi usada pelo governo soviético para atingir seus objetivos, matando aqueles que resistiam”, diz Liudmyla Hrynevych, diretora de um centro de pesquisa e educação sobre o assunto.

Mas a Rússia e outros historiadores colocam esses eventos em um contexto de fome também presente na Ásia Central e na própria Rússia e rejeitam essas conclusões.

No entanto, em meio a temores de uma crise alimentar global, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, acusou em maio Vladimir Putin de “usar a comida como arma”.

Andri Yermak, chefe de gabinete do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, afirmou recentemente que a Rússia tenta “refazer” o que fez na época com o Holodomor.

“A década de 1930 é muito propícia para estabelecer paralelos, pois foi também uma tentativa de aniquilar o que podemos chamar hoje de nação política ucraniana”, considera Hrynevych.

“Os ucranianos viram seus grãos confiscados e morreram de fome, então as autoridades soviéticas lhes enviaram uma parte, mas apenas para aqueles que concordaram em entrar em um Kolkhoz”, essas enormes cooperativas agrícolas soviéticas, acrescenta.

– Memória apagada –

Kharkiv, a mais de 450 km ao leste de Kiev, foi a capital da República Socialista Soviética da Ucrânia de 1919 a 1934 e sua região era considerada uma das 23 mais férteis da União Soviética.

Ao redor da aldeia de Maria Goncharova, “um terço dos habitantes morreu”, diz Tamara Polichshuk, que administra um museu dedicado ao assunto.

“Durante o Holodomor, o registro de óbitos foi interrompido”, destaca a especialista que fez pesquisas avançadas sobre o ocorrido.

Para ela, cada família do local ainda está marcada por essa memória que a URSS tentou apagar por décadas e que a Ucrânia só conseguiu se reapropriar após a independência, em 1991.

Mostrando suas reservas, a senhora de Cheremushnaya fica satisfeita ao ver que “ela ainda tem um pouco de tudo”.

“Muitos países nos ajudam. Eles nos abastecem, distribuem as coisas para as pessoas. Mas só Deus sabe por quanto tempo”, conclui antes de sair para se sentar do lado de fora de casa sob uma nogueira.