Para os fundadores de fintechs globais, o Brasil é o equivalente à Terra Prometida. O mercado bancário brasileiro é complexo, sofisticado e com muitas regulações. No entanto, essas aparentes dificuldades para competir são compensadas pelo potencial do mercado e pela margem de lucros. O brasileiro, segundo consta, gosta de aprender a usar novas tecnologias, o que facilita a vida das fintechs. Elas teriam por aqui um mercado de 34 milhões de pessoas aonda sem acesso aos serviços bancários, segundo dados do Instituto Locomotiva. Para completar, as autoridades estimulam a concorrência desde 2013, quando o Banco Central (BC) mudou a lei e permitiu os arranjos de pagamentos. Desde então, surgiram 1.158 startups financeiras.

“Atualmente, 44% dos brasileiros têm uma conta digital e achamos que esse percentual pode chegar a 90%” Eduardo Prota CEO da alemã N26 do Brasil (Crédito:Divulgação)

O aumento da competição iniciado pelo BC há quase uma década se acirrou há dois anos com a implantação do Pix e do open banking. E, na contramão do que ocorre em outros setores da economia, isso vem atraindo concorrentes internacionais. Todas elas querendo abocanhar uma fatia do mercado, controlado por apenas cinco bancos, que detém 80% do crédito. “Essa concentração gerou distorções e ineficiências, como produtos caros”, afirmou o presidente Associação Brasileira de Fintechs (Abfintech), Diego Perez. “As fintechs surgiram como resposta a isso. Somos um país de proporções continentais e temos mais celulares do que pessoas, o que chama muito a atenção dos estrangeiros.” Entre os interessados estão o banco digital alemão N26, a empresa argentina de tecnologia financeira N5, a startup israelense de avaliação de risco Innovative Assessments (IA), a fintech norte-americana de crédito para pequenas empresas Tribal e a fintech australiana de investimentos em bolsa Stake.

Presente em 24 países, a plataforma digital N26 ambiciona conquistar 100 milhões de clientes em todo o mundo. O potencial do Brasil tornaria mais fácil atingir essa meta. Segundo o CEO da N26 Brasil, Eduardo Prota, um estudo da consultoria Accenture mostrou que o Brasil é o terceiro país em participação de bancos digitais. “Atualmente 44% dos brasileiros têm uma conta digital e achamos que esse porcentual pode chegar a 90%.”

“GA concentração bancária gerou distorções e ineficiências, como produtos caros e as fintechs surgiram como resposta a isso” Diego Perez presidente Associação Brasileira de Fintechs (Crédito:Divulgação)

CRÉDITO A Stake compartilha essa visão. Criada em 2016, a plataforma visava facilitar a vida do australiano que desejasse investir em Wall Street. Como no Brasil, o sistema da Austrália era burocrático e caro, acessível só a quem tem grandes fortunas. O sucesso levou à expansão para a Nova Zelândia, a Inglaterra e agora para o Brasil. “O dólar valorizado em relação ao real dificulta o investimento externo, mas os investidores brasileiros sempre quiseram diversificar as opções”, disse o chefe de operações da Stake no Brasil, Paulo Kulikovsky. A Stake não pode fazer nada com relação ao câmbio, mas pode facilitar o processo. Ela oferece a possibilidade de comprar mais de 6 mil ações diretamente, com processos regulamentados tanto pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) brasileira quanto por sua equivalente americana, a Securities and Exchange Commission (SEC). “Tenho de checar os dados do cliente, autenticar e comunicar à Receita Federal para evitar lavagem de dinheiro. Tudo isso de forma rápida, fácil e eletrônica”, afirmou.
Ainda segundo Kulikovsky, esse mercado não funcionava direito há dois anos. Isso mudou.“A Stake tem 450 mil clientes no mundo, 10% disso no Brasil, que é nossa operação mais jovem e representativa. Nossos ativos sob custódia são cerca de US$ 1,4 bilhão”, afirmou. O executivo compara os 25 milhões de australianos com os quase 220 milhões de brasileiros. “O Brasil atrai pelo tamanho e pela vontade da população em investir, especialmente os mais jovens.”

“Na corrida do ouro, quem ganha dinheiro é quem vende pás, por isso estamos aproveitando a mudança
de mercado para crescero” Julian Colombo CEO da N5 do Brasil (Crédito:Divulgação)

Os investimentos são apenas uma parte do negócio. O Brasil é um país carente de capital, o que torna o crédito escasso e caro. Por isso a fintech norte-americana Tribal o considera um mercado estratégico. A empresa sediada em São Francisco, na Califórnia, está mapeando as oportunidades do mercado brasileiro para investir por aqui parte dos US$ 140 milhões que levantou junto a investidores. Segundo a gerente regional para a América Latina, Sonia Michaca, o Pais deve se firmar como o segundo maior mercado na região. A Tribal está no México, seu principal negócio, na Colômbia e no Peru. O foco são os emergentes, onde pequenos empreendedores precisam de crédito. “Vamos oferecer empréstimos que atendam esse público, adaptando nossos produtos quando necessário”, disse.

Emprestar dinheiro requer analisar riscos, e é de olho nessa necessidade que a israelense Innovative Assessments (IA) veio pra cá. Para o CEO, Saul Fine, a escolha do Brasil foi natural, pois a economia é a maior e a mais desenvolvida da América Latina. Fine tem fixos na memória os 34 milhões de desbancarizados. “Um em cada cinco adultos ainda não tem conta corrente e esse pessoal movimenta cerca de R$ 347 bilhões por ano. Ou seja, o Brasil pode se tornar maior do que muitos mercados desenvolvidos”, afirmou Fine.

Tudo isso requer tecnologia. A desenvolvedora de software financeiro argentina N5 foi outra que carimbou passaporte brasileiro depois de se instalar em 13 países. O Brasil tem duas características atraentes, segundo o CEO da N5 no Brasil, Julian Colombo. Uma delas é que o brasileiro gosta de inovação e de praticidade. A outra é que a demanda por soluções é muito maior do que a oferta. E é nessa onda que a N5 quer surfar. Para Colombo, a tecnologia dos bancos tradicionais é pouco flexível e amigável. “Crescemos nessa brecha, oferecendo softwares mais ágeis para as fintechs”, disse ele. Segundo Colombo, em três anos o faturamento da N5 subiu de R$ 600 mil para R$ 15 milhões. “O Brasil é nosso segundo maior mercado, respondendo por 22% do faturamento”, disse. A empresa já emprega atualmente 200 pessoas e quer contratar mais 100 até o fim do ano. “Na corrida do ouro, quem ganha dinheiro é quem vende pás, por isso estamos aproveitando toda essa mudança de mercado para crescer junto”, disse o CEO da companhia argentina N5.

DEMANDA GLOBAL As startups financeiras são um fenômeno global. Uma pesquisa da plataforma de análises CBInsights mostra que os investimentos nessas empresas bateram um recorde em 2021, chegando a US$ 132 bilhões. O valor quase triplicou em relação aos US$ 49 bilhões de 2020. Só no quarto trimestre de 2021 foram destinados US$ 35 bilhões para fintechs. Com isso, o rebanho de unicórnios – as empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão antes da abertura de capital – cresceu 108% no ano passado, chegando a 235. E 12 fintechs chegaram ao status de decacórnio, com valores superiores a US$ 10 bilhões. Neste cenário, o Brasil alcançou a liderança na América Latina, segundo o relatório “2021 Global Fintech Rankings”, da empresa de pesquisa Findexable.O Brasil ocupa hoje o 14º lugar no ranking global, depois de ter avançado cinco posições apenas no ano passado.

Essa rápida evolução justifica o interesse pelo segmento financeiro no Brfasil. “As fintechs se tornaram muito importantes por oferecerem mais acesso aos serviços financeiros e ao crédito”, afirmou o Diretor de Relacionamento, Cidadania e Supervisão de Conduta do Banco Central, Maurício Moura. “Agora, cabe ao regulador manter esse cenário de livre competição.”