Aos cuidados da lei: a Polícia federal conduz Meire Poza (à esq.) na operação encilhamento. Fernanda Braga de Lima (à dir.), da Gradual, teve sua prisão temporária transformada em preventiva (Crédito:Marcelo Chello/CJPress/Folhapress e Claudio Gatti)

Nas últimas semanas, duas empresas brasileiras anunciaram a intenção de fazer uma grande captação de recursos financeiros. A Guararapes Confecções, dona da Riachuelo, e o Carrefour querem captar R$ 800 milhões e R$ 1,5 bilhão, respectivamente, com a emissão de títulos de dívida para investidores qualificados (aqueles que detêm mais de R$ 10 milhões em ativos financeiros). O instrumento do mercado de capitais escolhido pelas companhias é a debênture com esforço restrito, que dá agilidade ao processo e não exige registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O problema é que tanto a CVM como a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros (Anbima) estudam rever essa via rápida de emissão desde que a Polícia Federal (PF) e auditores-fiscais da Receita Federal descobriram que gestores e administradores de fundos de investimento cometiam fraudes, utilizando esses títulos, contra institutos de previdência municipal.

A revelação: edição 1.022 da dinheiro, de junho do ano passado, mostrou com exclusividade o esquema de fraude

Grandes e sólidas empresas, de capital aberto com Riachuelo e Carrefour, não trazem preocupação para a autarquia e para o comitê de finanças da Anbima, que querem supervisionar e encontrar uma solução com outros reguladores, como a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) e as secretarias municipais de previdência. O sinal de alerta está ligado para companhias de capital fechado, responsáveis por 70% desse tipo de oferta. A Operação Encilhamento, deflagrada pela PF em 12 de abril, apontou que eram criadas empresas de fachada para emitir esse tipo de dívida privada. O esquema era direcionado aos institutos municipais de previdência. E, como as garantias dessas debêntures eram falsas, não havia a menor possibilidade de o valor ser pago.

Cálculos iniciais estimam que o prejuízo desse esquema criminoso pode ultrapassar R$ 1,3 bilhão. Foram cumpridos 60 mandados de busca e apreensão e 20 de prisão temporária nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso, Santa Catarina e Goiás. “A investigação conteve um esquema bilionário de desvio de dinheiro dos institutos municipais de previdência”, diz Victor Hugo Rodrigues Alves Ferreira, chefe da delegacia de repressão à corrupção e crimes financeiros da Polícia Federal em São Paulo. “A operação revelou um esquema altamente sofisticado porque, além da criação dos títulos a serem adquiridos, envolve a sua aquisição por fundos de investimentos” (leia a entrevista completa à página 56).

Mas essa história, que levou à cadeia Meire Poza, que era a contadora do doleiro Alberto Youssef, um dos operadores do esquema de fraude na Petrobras e o homem-bomba da Lava Jato; Fernanda Ferraz Braga de Lima e Gabriel de Freitas Júnior, da Gradual Corretora de Valores Mobiliários, não é novidade para os leitores da DINHEIRO. Na reportagem de capa da edição 1.022, de 9 de junho de 2017, a revista revelou, com exclusividade, todo o funcionamento do esquema de fraude com a emissão de debêntures sem lastro.

Provas: material sobre os fundos de previdência apreendidos pela polícia federal (Crédito:Pedro Ladeira/Folhapress)

A reportagem mostrou como o título privado ITSY 11, com valor de R$ 10.005.664,13, pertencente à empresa ITS@ Tecnologia para Instituições Financeiras, foi alocado no Piatã Fundo de Investimento Renda Fixa Longo Prazo Previdenciário Crédito Privado, que tinha como cotistas os municípios paulistas de Osasco, Porto Ferreira, São Sebastião, Jandira entre outros. A ITS@ é uma companhia pertencente a Fernanda e Gabriel, seu marido e sócio. Embora não fosse registrada como funcionária, Poza e um assistente tinham uma sala na Gradual e ajudaram a empresa a entrar no mercado de câmbio. Após essa revelação, a Polícia Federal deflagrou a Operação Papel Fantasma, a primeira fase dessa extensa apuração de fraude contra a previdência municipal.

Em 6 de julho do ano passado, um vídeo publicado com exclusividade pela DINHEIRO mostrava como Fernanda Braga de Lima, da Gradual, negociou com os sócios da Incentivo Investimentos, André Arcoverde, Maurício Kameyama e Isaltino Andrade, maneiras de contornar a alocação irregular da debênture no fundo. Nessa reunião, também está presente Gabriel de Freitas Júnior. As imagens mostram Fernanda explicando como faria essa operação, para que ninguém fosse prejudicado. O Inquérito Policial 004/2017 da Encilhamento, ao qual DINHEIRO teve acesso, mostra que a Gradual trocou as debêntures da ITS@ pela Bittenpar depois da circulação da reportagem. Anotações apreendidas pela PF mostram que Gabriel de Freitas explicava para um funcionário como concentrar os papeis da ITS@ no Blue Angel, um ‘fundo de prateleira’.

Ocultação de provas: trechos do inquérito da polícia federal mostram que a Gradual tentou esconder as fraudes após denúncia da Dinheiro

É comum que administradores tenham fundos juridicamente legais, mas sem qualquer uso, à disposição de um gestor que tenha pressa em abrir um fundo. “No dia 12 de junho foi publicada reportagem denúncia em mídia impressa de grande circulação, revista ISTOÉ Dinheiro. No dia seguinte, ocorreram essas transações”, diz o relatório da PF. “A vantagem de se fazer essa transação é tirar o papel denunciado da carteira de um fundo consolidado para a carteira de um fundo novo, que pode ficar até 90 dias oculto para o público em geral. Na prática, as debêntures ITS@ foram ‘escondidas’ do público por 90 dias a partir da transação.” O juiz federal João Batista Gonçalves, da 6ª Vara Criminal de São Paulo, acolheu pedido do Ministério Público Federal e transformou a prisão temporária dos sócios da Gradual em preventiva. Será o fim da linha?


“As investigações continuam e ainda há muito a ser apurado”

O delegado Victor Hugo Rodrigues Alves Ferreira, chefe da delegacia de repressão à corrupção e crimes financeiros da Polícia Federal em São Paulo conversou com a DINHEIRO:

Qual é a importância das operações Papel Fantasma e Encilhamento?
A investigação conteve um esquema bilionário de desvio de dinheiro dos institutos municipais de previdência, com indícios de envolvimento de gestoras e administradoras de investimentos, consultorias e dirigentes de RPPSs [Regime Próprio de Previdência Social]. Em segundo, serviram para alertar os servidores públicos municipais sobre a importância de acompanhar as escolhas de investimentos dos gestores de seus RPPS. Finalmente, as operações serviram para expor fragilidades no controle da aplicação dos recursos dos institutos de previdência e a possibilidade de influência política na escolha dos investimentos.

A Polícia Federal considera essas apurações casos isolados?
Não. Já houve outras investigações da Polícia Federal sobre fraudes análogas contra institutos de previdência municipais.

O tipo de fraude cometido pelas empresas gestoras é sofisticado?
Sim, a investigação revelou um esquema altamente sofisticado porque, além da criação dos títulos a serem adquiridos, envolve a sua aquisição por fundos de investimentos, que muitas vezes aplicam o patrimônio dos servidores em outros fundos, em várias camadas de investimento, tudo para disfarçar a aquisição e burlar os limites estabelecidos nos regulamentos dos fundos e as restrições de determinados tipos de investimentos impostas pela legislação dos RPPSs.

Existe a possibilidade de não ter havido má-fé e sim algum tipo de erro?
As evidências trazidas para o inquérito apontam que, para viabilizar as aplicações, eram pagas vantagens indevidas aos consultores e intermediários, que eram calculadas com base nos valores captados. Além disso, também há elementos nos autos indicando que algumas empresas emissoras dos títulos eram diretamente relacionadas aos gestores e administradores dos fundos.

As empresas, que foram pegas pela PF, alegam que os títulos são legais. Como elas faziam para tornar esses papéis legais?
Os títulos adquiridos pelos fundos realmente foram emitidos de acordo com o procedimento burocrático exigido na legislação. A ilegalidade, no entanto, não está no título em si, tomado isoladamente, mas sim na cooptação dos dirigentes dos institutos para aplicar o dinheiro dos contribuintes em fundos que investem em debêntures emitidas por empresas que, sabidamente, não vão honrar suas dívidas.

O que mostra a investigação?
A investigação mostra o seguinte esquema: uma empresa de participações era criada pela organização criminosa. Embora com capital social baixíssimo e sem oferecer garantias, a empresa era autorizada a emitir debêntures, muitas vezes de centenas de milhões de reais, para investir em um projeto. Emitidas as debêntures, elas eram compradas por fundos de investimento, cujas cotas eram adquiridas pelos institutos de previdência, mediante pagamento de vantagens para pessoas relacionadas aos fundos e aos institutos.

Após essas duas operações, o caso está encerrado? Qual é o prejuízo estimado para os institutos municipais de previdência?
Não, as investigações continuam e ainda há muito a ser apurado. Nessa fase dos inquéritos, estima-se um prejuízo de centenas de milhões de reais. Mas apenas ao final da investigação saberemos, de forma precisa, o valor do rombo.