Não será fácil. Nem breve. Nem indolor. Na verdade, neste momento o Brasil mergulha no pior estágio da pandemia do coronavírus. O número de casos e mortos cresce. Na segunda-feira 11, o País já contabilizava 163 mil casos confirmados e mais de 11 mil mortes. E o sistema de saúde está saturado ou perto de colapsar em diversas grandes cidades. Para piorar, de Brasília nunca partiu gestão centralizada e séria para a crise. O oposto. Houve deliberada desobediência oficial à quarentena. O que, dado o desgoverno escolhido em outubro de 2018, nem mais é surpresa. Ainda assim, ou exatamente por isso, as lideranças do mundo do trabalho precisam olhar para frente. Não se trata de opção. “What matters most is how well you walk through the fire” – resumiria o autor americano Charles Bukowski. “O que mais importa é quão bem você atravessa o fogo.” Entre as áreas fortemente afetadas pela atual crise, a cultura é uma das grandes vítimas. Para entender o atual cenário do setor, DINHEIRO ouviu quatro nomes de relevância na cultura nacional: o cineasta e produtor paulista Fernando Meirelles, o ator gaúcho Julio Andrade, o ator, diretor e escritor baiano Lázaro Ramos e o cantor e compositor pernambucano Lenine. A seguir, eles falam não apenas da questão cultural, mas também de como a pandemia global pode mudar para sempre a forma como vivemos e nos relacionamos.

+ 100 saídas para o pós-covid-19

Fernando Meirelles, cineasta e produtor paulista (64 anos) 

O que você acha que vai acontecer com a economia até o final do ano que vem?

Essa não é minha área, mas creio que só teremos uma perspectiva lógica depois que o Mourão assumir e montar seu ministério. Diria que isso leva uns 10 meses. Ir além disso seria mera especulação. Mas é claro que os próximos 3 anos não serão bonitos, principalmente pelo desemprego. Espero que esta onda de solidariedade das empresas e das pessoas se estenda.

O que deve mudar nos hábitos e comportamentos das pessoas?

Respondo o que deveria ser mudado, não o que acho que pode vir a mudar. “Nossa casa está pegando fogo” foi a metáfora usada pela Greta Thunberg (ativista ambiental sueca) para se referir à crise do clima. No embalo que vínhamos – a humanidade, não apenas o Brasil -, parecia que seria impossível brecarmos e mudar nosso estilo de vida e destino a tempo. Este vírus nos mostrou que é possível parar. Como os governos terão de colocar muito dinheiro para reerguer a economia, esta é a hora para este dinheiro ir para uma economia sustentável e de baixo impacto. Não é hora de tentar salvar a indústria do petróleo ou da aviação, mas, sim, a de energia renovável, a da agricultura de baixo carbono. Talvez, esta seja a última oportunidade para ao menos retardarmos o que já está no mapa. A Covid-19 é uma pulguinha insignificante frente à crise do clima. Esta é a hora.

Em que segmentos você acredita que as mudanças causadas pelo coronavírus serão mais profundas? E por que?

Esta experiência deve dar um impulso no trabalho remoto, no comércio online, nas relações por vídeo. Só isso já impacta tudo mais. Trânsito, consumo, viagens aéreas, qualidade do ar, qualidade de vida e por aí vai. No cenário pessoal, é preciso ser muito vacilão para não aproveitar este momento para enxergar a própria vida em perspectiva. Usar o raro tempo livre para aprender alguma coisa. Tocar violão, fazer pão, meditar, assistir a palestras, melhorar – ou detonar de vez – relações que estavam sendo empurradas com a barriga. Pessoalmente, eu sairei transformado desta.

Cite uma palavra que defina o mundo antes da crise do coronavírus.

Histeria.

Cite uma palavra que definirá o mundo depois da crise do coronavírus.

Tensão.

Na sua opinião, que áreas passarão por uma transformação digital mais radical? E qual será a maior transformação digital que sua área de atuação deve sofrer pós-coronavírus?

O trabalho será impactado pelas tecnologias digitais testadas na marra neste período. O excesso de informação sem fonte também parece ter saturado. A credibilidade da imprensa profissional deve sair fortalecida. O leitor/espectador já está entendendo que profissionais que checam informação não têm preço e que 95% de WhatsApp, Tik-Tok e estas merdas são lixo que te invadem e entram no seu sistema, se não usado com consciência. Chegaríamos lá, mas o vírus catalisou o processo. Nestes dois últimos meses, a minha produtora, a O2, tem filmado principalmente comerciais de uma maneira impensável há 2 meses. As equipes de filmagem têm 7 ou 8 pessoas, e não mais 90. A montagem e a pós-produção são feitas nas casas dos montadores e finalizadores. As reuniões são por WhatsApp. Todo o protocolo e ritual de reuniões intermináveis com clientes e agências caiu. Isso pode gerar perda de empregos, fato, mas a eficiência deste novo modelo é espantosa.

Lázaro Ramos, ator, diretor e escritor baiano (41 anos) 

O que você acha que vai acontecer com a economia até o final do ano que vem?

Acredito que a economia vai ter de repensar seu modelo de distribuição de renda, do tamanho dos lucros das empresas e da relação da sociedade com o consumo. E isso pode nos apresentar um novo formato econômico, que não é o socialismo, mas me parece que vai ser uma transição forte do capitalismo atual.

O que deve mudar nos hábitos e comportamentos das pessoas?

Não sei se vai mudar. Talvez, quando acabar esse período de confinamento, as pessoas voltem aos velhos hábitos. E isso seria uma pena. Eu creio que fazemos parte da natureza e que ela manda recados pra gente. E ela está mandando uma mensagem muito clara neste momento, para repensarmos nosso comportamento no mundo. Como tratamos o meio ambiente, como tratamos os outros seres humanos, como estamos vivendo em comunidade, como fazemos a gestão das nossas cidades. Acho que algumas pessoas vão entender esse recado e outras vão voltar a viver como antes, presas à uma realidade que não existe mais, que é a vida antes do coronavírus.

Em que segmentos você acredita que as mudanças causadas pelo coronavírus serão mais profundas? E por que?

No meu segmento, o cultural, a transformação vai ser profunda. Não sei quando as aglomerações serão novamente permitidas. Talvez, a música consiga se adaptar melhor. Mas o teatro e o cinema, por exemplo, vão passar por uma grande crise. Os pequenos empresários também enfrentarão muitas dificuldades e vão precisar de incentivos. As grandes empresas entenderam que, nessa crise toda, o valor delas vai estar agregado a ações sociais. Já percebemos isso até na forma de se fazer publicidade. No meio de tudo isso, a gestão pública também foi colocada em cheque, com seus planos de saúde e de orçamentos para tragédias e situações de emergência precisando ser revistos.

Cite uma palavra que defina o mundo antes da crise do coronavírus.

Polarização.

Cite uma palavra que definirá o mundo depois da crise do coronavírus.

Comunidade.

Na sua opinião, que áreas passarão por uma transformação digital mais radical? E qual será a maior transformação digital que sua área de atuação deve sofrer pós-coronavírus?

A área que vai passar por maior transformação é o universo dos serviços online. Muita gente não usava o online no dia a dia e teve de fazer essa transição. A curto prazo, penso que o meu setor vai ter de encontrar novas formas. O teatro precisará achar outras maneiras de existir, já que aglomerações ainda estarão proibidas. O teatro de rua e os espetáculos com públicos menores podem ser um caminho. No cinema, os lançamentos terão de ser em plataformas on-line. E acredito que vai surgir algum formato digital, que a gente ainda não conhece, e que conseguirá monetizar a exibição dos filmes. Penso que a própria compreensão do que é entretenimento vai mudar, para saciar o desejo de cultura das pessoas.

Lenine, cantor e compositor pernambucano (61 anos) 

O que você acha que vai acontecer com a economia até o final do ano que vem?

Os donos do mundo continuarão os mesmos. Do caos, surgirão alguns outros donos. O cotidiano jamais será o mesmo. Mas sou otimista e acredito que, depois desse sofrimento, o melhor futuro para o planeta será o conceito da economia circular.

O que deve mudar nos hábitos e comportamentos das pessoas?

Não acredito que alguém já possa prever as consequências de tanto isolamento, ansiedade e medo na psiquê humana. Não haverá “normal” para o qual voltarmos.

Em que segmentos você acredita que as mudanças causadas pelo coronavírus serão mais profundas? E por que?

A começar por todos os segmentos nos quais o contato humano se fazia necessário. Seremos todos afetados por este acontecimento planetário.

Cite uma palavra que defina o mundo antes da crise do coronavírus.

Míope.

Cite uma palavra que definirá o mundo depois da crise do coronavírus.

Frágil.

Na sua opinião, que áreas passarão por uma transformação digital mais radical? E qual será a maior transformação digital que sua área de atuação deve sofrer pós-coronavírus?

Todas as áreas estão se transformando. No início da música, universo no qual estou inserido, era somente vinil e cassete. Vi o surgimento do CD, DVD, MD, ADAT. Na era digital, tudo muda profundamente. O streaming parece o único futuro possível. O digital e sua rapidez atropelando os direitos e as leis autorais. Mas uma coisa não mudou: o valor real da criação continua não sendo devidamente valorado.

Julio Andrade, ator gaúcho (43 anos)

O que você acha que vai acontecer com a economia até o final do ano que vem?

Acredito que profissionais liberais e pequenos produtores rurais vão ganhar mais espaço, justamente por precisarem se reinventar durante esta pandemia. Penso que teremos uma economia mais solidária, com um olhar mais voltado às classes menos favorecidas.

O que deve mudar nos hábitos e comportamentos das pessoas?

O mundo estava vivendo tempo de economia muito agressiva, ataques pesados contra o meio ambiente. Acho que isso vai perder força. Com a pandemia, as pessoas estão olhando um pouco mais para a própria casa, para dentro de si. Ainda há muitas incógnitas. O que é realmente essencial às nossas vidas?

Em que segmentos você acredita que as mudanças causadas pelo coronavírus serão mais profundas? E por que?

Em todos. Inclusive, na minha área (TV e cinema). Como será o teatro daqui para frente? E fazer cinema, onde geralmente precisamos de equipes enormes para filmar uma cena? E acho que uma das áreas mais impactadas será o setor de transportes. Creio que teremos menos carros e mais bicicletas nas ruas.

Cite uma palavra que defina o mundo antes da crise do coronavírus.

Ganância.

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Solidariedade.

Na sua opinião, que áreas passarão por uma transformação digital mais radical? E qual será a maior transformação digital que sua área de atuação deve sofrer pós-coronavírus?

A área da saúde nunca mais será a mesma. O Brasil precisa aprender, com a crise do coronavírus, que precisamos investir de verdade em pesquisas científicas, na qualidade do serviço, na estrutura hospitalar, em Inteligência Artificial. Na minha área, o confinamento está reforçando o que já sabíamos: qualquer pessoa pode ter a própria produtora dentro de casa, fazer seus filmes, documentários, clipes musicais, shows. Apesar do pavor global, sou otimista e acredito que vamos sair dessa como pessoas melhores.