UM CONHECIDO PROvérbio bíblico diz que a fé remove montanhas. Mais que o significado cristão da frase, a fé é o caminho percorrido por muitos investidores que crêem haver ligação entre a religião e o investimento. O que, à primeira vista, parece ser uma busca pelo perdão divino em razão do acúmulo de lucros e da prosperidade financeira, pode ser o simples emprego dos princípios e ensinamentos de diferentes profetas na aplicação do dinheiro. João Calvino, quando realizou a reforma protestante no século XVI, disse que a prosperidade material é um sinal da graça divina. Os recursos financeiros são o meio para a prosperidade e nunca o fim. Maomé, Jesus e Buda passaram para seus seguidores suas visões de riqueza e, claro, a reprovação pela má utilização da fortuna.

PASSAGENS BÍBLICAS SUGEREM APLICAÇÃO
A JUROS
HÁ MAIS DE 2.000 ANOS

A religião cristã predomina entre a população brasileira. Não existem regras nem obrigações financeiras para os 125 milhões de católicos, além da doação solidária à Igreja. No ano passado, o caixa do Estado do Vaticano recebeu ? 50,8 milhões dos seus fiéis, perda de 32% nas contribuições em comparação a 2006. Como os católicos aprendem que a riqueza material não pode ser maior que o valor da energia gasta com o reino de Deus, poucos fazem a ligação entre Jesus e a economia. Mas ela existiu. O recém-lançado livro Histórias de Dinheiro da Bíblia (Sociedade Bíblica do Brasil, 160 págs. R$ 10,40) conta as passagens sobre o dinheiro na principal referência cristã. Uma parábola sobre investimentos está no Novo Testamento e conta a história de três empregados que recebem partes da fortuna de um representante do Criador proporcionais às suas capacidades. Dois deles aplicam o recurso nos próprios negócios e duplicam o montante recebido, sendo considerados bons e fiéis. O terceiro, com medo de arriscar, enterrou o dinheiro. Foi punido pela atitude de deixar o dinheiro improdutivo. “Você deveria ter depositado o dinheiro no banco e, quando eu voltasse, o receberia com juros”, repreendeu o patrão, há mais de 2.000 anos. E o que isso quer dizer? “O fundamental na relação financeira é a confiança. Essa metáfora indica a confiança de Deus nas pessoas e que ela deve ser correspondida”, diz Agnaldo Portugal, doutor em filosofia da religião da Universidade de Brasília.

Investir para a expansão da sociedade também é o que move o budismo. Existem diferentes linhagens que interpretam os ensinamentos de Buda, mas em nenhuma delas há condenação pelo acúmulo de capital. Para eles, existe uma correlação entre a causa e o efeito, por isso, ao se acumular a riqueza material é indicado dividir essa felicidade com o semelhante. “É preciso transformar a conquista em um bem espiritual, com boas ações, como a doação a instituições filantrópicas, para alcançar a virtude”, diz o bispo Saito, da linhagem do budismo primordial, que possui cerca de três mil fiéis no País. Não há interferência sobre o destino do investimento ou proibições sobre as aplicações. “Não entramos nesses detalhes, o bem é da pessoa”, afirma o bispo Saito, que destaca que as conseqüências pela má utilização do dinheiro ocorrerão em uma próxima vida.

O ATIVO ISLÂMICO PRECISA GERAR RIQUEZA PARA A SOCIEDADE

Entre as diferentes crenças, nenhuma se destaca tanto quanto o islamismo. O Brasil possui uma comunidade muito pequena de muçulmanos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o islamismo está inserido entre outras religiosidades, assim como o budismo, com menos de 2% da população de 170 milhões de habitantes no censo de 2000 (último dado disponível). Em razão disso, eles estão desobrigados a seguir a lei que rege todas as movimentações financeiras. Chamada de Shariah, ela discrimina os princípios e produtos que precisam estar de acordo com o Alcorão. Para entender como os muçulmanos tratam suas finanças, é preciso sempre lembrar que o Alcorão tem força para dirigir qualquer atividade da vida de 1,3 bilhão de islâmicos ao redor do mundo. E eles são rígidos no trato tanto da parte religiosa quanto da secular. “O Islã não vê problema em ganhar dinheiro, mas o ativo precisa circular e gerar riqueza para a sociedade”, conta Ângela Martins, diretora da área internacional do ABC Brasil, um banco comercial com capital dos fundos soberanos de Abu Dhabi, Kuwait e Líbia. Além do ABC, o único banco instalado no Brasil com capacidade de atender às particularidades islâmicas é o HSBC. Pelo mundo, existem mais de 350 instituições financeiras com bancas islâmicas em seus negócios.

Nesse período em que a crise financeira deixa os investidores do lado ocidental de cabelo em pé, os muçulmanos ficaram distantes das operações especulativas que serviram de âncora para afundar a economia global. Risco e especulação são banidos das suas possibilidades de negócios. Os contratos de mercado futuro são específicos e estão mais presentes em países liberais como a Malásia. Especular com o boi, um dos índices mais negociados na BM&FBovespa, está fora de questão. “Todos os negócios devem estar claramente descritos em um contrato”, afirma Anthony Saint, chefe de originação e estruturação de negócios do Gatehouse Bank, o quarto maior banco especialista em finanças islâmicas do Reino Unido. Esse contrato é chamado de sukuk, um certificado financeiro semelhante a um título tradicional de dívida. A similaridade é pela necessidade desse papel ser negociável em um mercado secundário. A particularidade é que o sukuk deve ter ativos reais e capazes de ser identificados pelas partes envolvidas. “As transações precisam envolver ativos e não existe compra de expectativas”, confirma Ângela.

Existem algumas proibições nas finanças islâmicas. A principal delas é a impossibilidade de se pagar ou cobrar juros que, como a usura, é condenada porque tem como função transformar dinheiro em dinheiro, o que paralisa o desenvolvimento produtivo mundial. Entretanto, como o lucro é aceito, é permitido se cobrar um bônus financeiro pelo negócio. Por exemplo, uma pessoa quer comprar um bem, mas não tem o valor total. O banco empresta o montante para ele pagar a prazo e recebe o seu prêmio. “É preciso ter a percepção de que se está agregando valor”, explica Ângela. Além disso, os muçulmanos não podem investir em armamentos, criação de porcos, jogos e entretenimento e bebidas alcoólicas. Há, porém, exceções que podem ser autorizadas pelo comitê do Shariah, formado por supervisores religiosos que estão presentes em cada instituição financeira. Por exemplo, o álcool pode ser uma pequena parcela da venda de hotéis e supermercados que não infringe as leis islâmicas. Dependendo do caso, esses supervisores podem aprovar o investimento.

As fontes de financiamento internacionais estão fechadas provisoriamente, mas muitas empresas brasileiras têm o perfil ideal para receber investimentos islâmicos. O Banco ABC tem servido de ponte para esses investidores conhecerem as oportunidades no Brasil. Mais do que compradores, eles querem ter participação acionária nos produtos que consomem. A principal procura é pelos setores de alimentação e imobiliário, incluindo hotéis. E começa a haver o interesse pelas usinas de açúcar. “Algumas empresas do mercado de capitais podem captar recursos nos países árabes”, diz Ângela. Atenta a essa alternativa, a BM&FBovespa realizou um seminário sobre finanças islâmicas na semana passada. “Estamos trabalhando para abrir novos mercados para as empresas brasileiras”, confirma Gilberto Mifano, presidente do conselho de administração da bolsa. Se não tivesse fé no mercado local, a BM&F Bovespa não seria hoje uma das quatro maiores bolsas do mundo.

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