O rentável aliança envolvendo o agronegócio, os sertanejos e o Estado voltou a chamar atenção nas últimas semanas com a divulgação dos recursos milionários direcionados por cidades de pequeno porte para o cachê de grandes artistas. Mas essa é só a ponta recente de uma relação que se retroalimenta no Brasil há décadas. Às vezes disfarçada de identidade nacional, outras de pão e circo, o uso da arte (e de artistas) como método político ganhou um novo capítulo com a investigação do Ministério Público a nove shows com cachês somados que ultrapassavam R$ 8 milhões. Trocando em miúdo isso significa que ao longo dos 20 dias em que se espalha a agenda dos artistas, cada prefeitura tem um gasto diário equivalente a R$ 44 mil. Valor que representa três anos de salário de um cidadão médio dos municípios que recebem os eventos.

E se a comparação entre poder público e população não convence, quando comparado a outras métricas de gasto do Estado o número apresentado pelas nove cidades também é alarmante. O Orçamento da União direcionado para contratação de shows e despesas relacionadas a artistas para 2022 está estipulado em R$ 103,6 milhões. Isso para ser distribuído em 356 dias para 5,7 mil cidades. Na média de gasto diário por município é como se cada prefeito pudesse gastar R$ 51 a cada 24 horas com contratação de shows, cifra 862 vezes menor que os shows do sertanejo que caíram na luz da Justiça.

Mas, afinal, se o dinheiro é da prefeitura e os cidadãos querem grandes shows, porque é ruim para a economia uma despesa desse porte? Quem explica isso é o professor de matemática aplicada e doutor em gestão de recursos públicos Ondinei Nogueira. E a resposta parte da premissa do retorno viável. Essa é a métrica usada para sabermos, por exemplo, que a cada R$ 1 gasto com saneamento básico, o sistema público de saúde deixa de gastar R$ 4. Ou então que a cada 100 km de estradas novas a velocidade média do tráfego sobe 8%. Esses dados, que são do IBGE e da Confederação Nacional do Transporte (CNT), respectivamente, ajudam a balizar os recursos públicos entre o que é gasto, investimento e seus retornos.

No caso da cultura há uma tendência em tratar tudo como um gasto, o que é um erro. Isso porque a economia que envolve a cultura tem outros retornos viáveis que podem não ser mensurados com dinheiro. Ela ajuda na cultura local? Ela apresenta novas interpretações de mundo? Ela tem relevância histórica? Ela melhora bem estar social? Todas essas questões (que, por ironia do destino, são feitas no cadastro para acesso à Lei Rouanet) formam o chamado “bem imaterial em benefício social e histórico”. Essas premissas também seriam usadas pela Lei Paulo Gustavo, que liberaria R$ 3,8 bilhões para auxiliar e financiar artistas afetados pela pandemia e a Lei Aldir Blanc 2 que reservava outros R$ 3,2 bilhões para repasse a estados e município para o fomento, desenvolvimento e apresentações culturais. Ambos os textos foram vetados integralmente no início de maio pelo presidente Jair Bolsonaro.

E se os recursos públicos são escassos, buscar ajuda na iniciativa privada pode ser uma solução. Juliana Senna, que foi coordenadora do núcleo fomento e captação de artistas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo entre 2006 e 2010 citou a Parada Gay que acontece desde 1997 na cidade de São Paulo. “Em 2007 já percebemos que só com recursos públicos o evento não atingiria seu potencial”.

No ano seguinte, o valor despendido triplicou com ajuda de patrocinadores. O evento hoje funciona com cotas de patrocínio e venda de espaços publicitários e, em 2019, movimentou R$ 403 milhões.

REALIDADE SERTANEJA Mas e quando o show é de aniversário de uma cidade de menor porte? Munípios pequenos precisam bancar suas atrações. Aí os problemas se tornam “quem?” e “por quanto?”. No caso das investigações em curso, o cantor Gusttavo Lima faria um show em São Luiz (RR) por R$ 800 mil. A cidade só tem 8,2 mil habitantes. Lima tinha ainda um show previsto em Teolândia, na Bahia (cidade que foi arrasada por enchentes em maio). A prefeita Maria Baitinga de Santana (Progressista) disse que o show era um sonho pessoal. O valor do contrato era de R$ 704 mil. O sertanejo tinha agenda em Magé (RJ) e Conceição do Mato Dentro (MG), com o cachê girando perto de R$ 1 milhão. Artistas como Wesley Safadão, Xand Avião, Bruno & Marrone, Simone & Simaria, Israel & Rodolffo também estão com contratos sob avaliação do Ministério Público (MP).

O advogado de um dos cantores citados pelo MP, que falou à reportagem sob condição de anonimato, afirmou que a defesa de seu cliente é pautada na premissa de fé pública. “Não há qualquer tipo de evidência de fraude ou falta de lisura no contrato assinado”, disse. É fato que nesse tipo de acordo não há necessidade de abertura de concorrência, e a prefeitura escolhe a atração e o pagamento de acordo com o que quiser. “Os problemas começam se houver sinais de aparelhamento de preços, rachadinhas ou alguma relação ideológica entre os contratantes e os contratados, o que não é o caso dos meus clientes”, afirmou. Trata-se de meia verdade. Em resumo, como cabe à defesa, ele leva a questão apenas para o campo da legalidade. Mas o assunto central é a legitimidade, a moralidade desse tipo de contrato milionário com cidades pobres.

Em suma, não é ilegal, mas é imoral. E nem isso é inédito. No início dos anos 1990 houve uma explosão da popularidade dos sertanejos, e ela foi capitalizada. Em 1991, famosos começaram a frequentar a Casa da Dinda, residência oficial do então presidente Fernando Collor em Brasília. Por lá também foram gravadas edições do Sabadão Sertanejo, do SBT, principalmente quando os casos de corrupção envolvendo Collor ganharam tração. Nunca houve qualquer tipo de constatação de crime nessa relação simbiótica, mas é ali que a relação entre governos e sertanejos se estreita.

Depois disso, a popularidade do gênero seguiu em expansão. Seu grande apelo deu a boa parte desses artistas voz e relevância nacional. Alguns, como Gusttavo Lima, ampliaram o horizonte. Ele investiu em fazendas e entrou nos ramos de alimento, gado e cavalo. Em 2020, ganhou o título de Embaixador do Agronegócio.

Por ironia, o caos sertanejo degringolou com outra artista que se tornou uma pessoa de negócios, Anitta — inimiga declarada de Jair Bolsonaro. Entre seus papéis está o de integrar o conselho do Nubank. O sertanejo Zé Neto misturou uma tatuagem íntima da funkeira com o uso da Lei Rouanet. Fez isso num show em Sorrisos (MT), contratado pela prefeitura por mais de R$ 400 mil. “Nós não dependemos de Lei Rouanet, nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba [sic] pra mostrar se a gente tá bem”. O tema deve ser fixação no universo bolsonarista, já que em fevereiro o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e a artista-empresária se desentenderam na internet e debateram o mesmo assunto. Ela o desafiou para ver quem havia feito mais pelo Brasil. É nesse tipo de buraco que caímos como nação.