Desde sua criação, em 2009, o Bitcoin vem atiçando a imaginação dos financistas. Eles avaliam se a moeda virtual pode ser um substituto para o dinheiro fiduciário, aquele que circula pelos bolsos ao redor do mundo. Até o momento, a resposta tem sido não. Por um simples motivo: apesar de toda a tecnologia em sua criação e distribuição, o Bitcoin nunca conseguiu ganhar escala. Isso mudou na terça-feira 18, quando o Facebook divulgou, após meses de suspense, o “white paper” – equivalente a um prospecto de uma emissão de ações – da Libra.

A moeda virtual que, espera-se, deverá circular entre os 2,3 bilhões de usuários de Facebook e WhatsApp pode, pela primeira vez, ser uma ameaça concreta ao sistema financeiro tradicional, bancos e administradoras de cartão de crédito incluídas. “Essa iniciativa tem um potencial realmente revolucionário”, diz Arthur Igreja, professor dos cursos de MBA da Fundação Getulio Vargas. “Em si, a tecnologia não é tão nova, mas é a primeira vez que uma empresa tão global e tão grande faz isso.”

Escaldado com as críticas recebidas por sua atuação pouco transparente na eleição presidencial americana, Zuckerberg tomou várias precauções para evitar que a Libra fosse vista como uma iniciativa apenas do Facebook. Formalmente, a nova moeda será emitida e gerida por uma associação sem fins lucrativos baseada em Genebra, na Suíça. A Libra Association tem entre seus participantes alguns dos nomes mais conhecidos do mercado financeiro. Visa, MasterCard, PayPal, Uber, entre vários outros, estão lá. Para garantir que não haverá um controle definido, os estatutos da associação determinam que haverá um mínimo de 100 participantes.

Assim, ninguém terá mais de um 1% do controle. E, para evitar oscilações como as do Bitcoin, a Libra será emitida com lastro em moedas fortes: dólares, euros, libras esterlinas e ienes. Isso deverá garantir relativa estabilidade em relação às taxas de câmbio tradicionais. As transações serão realizadas pelo sistema da “wallet”, ou carteira virtual. O usuário compra uma determinada quantidade de Libras usando sua própria moeda, armazena-as em uma carteira virtual e as transfere para a carteira de outro usuário. A promessa do Facebook é que isso vai atender os bilhões de usuários que possuem smartphones, mas que não têm acesso a contas bancárias e a produtos financeiros. Assim, a Libra é a promessa definitiva de democratização dos serviços financeiros.

Não curti: Maxine Waters, diretora do Comitê de Finanças da Câmara dos Deputados americana, pediu a suspensão das pesquisas que envolvem a Libra, ao menos por enquanto (Crédito:AP Photo/Jacquelyn Martin)

Apesar disso, as críticas se avolumam. “Uma moeda transnacional levanta questões regulatórias importantes”, diz Igreja. Por exemplo, o que vai ocorrer se houver um ataque especulativo contra a moeda, ou se começar a haver inflação em Libras. Há outras questões, como a privacidade das transações. Apesar dos vazamentos, os bancos tradicionais e as administradoras de cartões dedicam boa parte do seu tempo a garantir o sigilo dos usuários, exceto em casos de suspeita de práticas criminosas. A Libra Association já informou que, como no caso de outras moedas virtuais, as transações serão “pseudo anônimas”. Em português, isso quer dizer que o total transacionado, a hora e o endereço lógico dos envolvidos na cadeia do blockchain serão visíveis apenas para os participantes da rede. Para evitar crimes, o Facebook já anunciou a criação do Calibra, uma subsidiária dedicada a garantir a “separação entre os dados da rede social e os dados financeiros”.

POLÍTICOS Os políticos não curtiram a ideia. Nos Estados Unidos, os deputados Maxine Waters e Patrick McHenry, respectivamente diretora e secretário do Comitê de Finanças da Câmara dos Deputados americana já pediram a seus pares para convocar os executivos do Facebook. Maxine pediu oficialmente que o Facebook interrompa o desenvolvimento da Libra, ao menos por uns tempos.

Do outro lado do Atlântico, as autoridades econômicas compartilharam a insatisfação. Bruno Le Maire, ministro das Finanças da França foi taxativo em dizer que o dinheiro emitido por Zuckerberg não pode ser comparado às moedas nacionais. O deputado alemão Markus Ferber, membro do Parlamento Europeu, disse que a Comunidade Europeia não deveria “deixar o Facebook operar em um Nirvana regulatório”. E Mark Carney, governador do Banco da Inglaterra, o BC inglês, disse – britanicamente, claro – que “mantinha a mente aberta, mas que a Libra deveria ser examinada bem mais de perto antes de tomarmos qualquer decisão.” Qualquer que seja o futuro da Libra, sua história está só começando.