Varejo e tecnologia. Vamos combinar que essa dupla ainda não emplacou. Dados da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) mostram que, das 300 maiores empresas do setor, 60% (181) ainda não oferecem vendas online. E a maior resistência está no segmento de alimentação. Das 144 redes mais relevantes de supermercados, uma operação ainda de forte apelo regional e local, somente 18 (12,5%) possuem e-commerce. O estudo global TetraPak Index confirma que o setor de alimentos e bebidas é o mais resistente. No Brasil, apenas 0,2% do consumo total desses itens se dá de forma online e a previsão é que não passe de míseros 0,8% em 2030. Patamar equivalente ao da Rússia.

No topo aparecem Coreia do Sul, onde o mercado online de alimentação já representa 11,3% das vendas totais, Inglaterra (5,4%) e França (4,2%). Quebrar a resistência à tecnologia caberá à própria tecnologia. Bons exemplos não faltam. No Reino Unido, um dos principais cases vem de uma senhora de 150 anos – a rede de supermercados Sainsbury’s, fundada em 1869. A marca é referência no e-commerce ao usar sofisticada análise de dados em sua plataforma de compras. Para um consumidor que esteja em dieta não serão mostrados salgadinhos e outras tentações. “É uma relação de confiança. Quanto mais sabemos sobre o cliente melhor seremos para ele”, disse à Bloomberg a chefe da operação digital da rede, Clodagh Moriarty.

Invasão a caminho: não se assuste se trombar com drones em sua próxima ida ao supermercado. Eles farão varreduras pelas prateleiras para o controle de fluxo de itens disponíveis e monitoramento de estoques

No caso brasileiro o consumidor parece cada vez mais disposto a experiências digitais do que as empresas em oferecê-las. Dados relativos ao primeiro semestre do ano passado levantados pela Ebit/Nielsen mostram que o número de brasileiros que faz compras online dobrou em cinco anos e saiu de 14,1 milhões (2013) para 27,4 milhões (2018). Destes, 16% foram estreantes: 4,5 milhões de pessoas que fizeram pela primeira vez uma aquisição por meio digital. E a receita também cresce. No primeiro semestre do ano passado o faturamento somou R$ 23,6 bilhões, alta de 12,1% em relação a 2017, com um expressivo incremento nas compras por dispositivos móveis.

O número de transações por celulares e tablets representou 32% do total no primeiro semestre do ano passado, com alta sobre 2017 tanto na quantidade de pedidos (41%) quanto na receita (30%). “Os consumidores brasileiros definitivamente adotaram os smartphones para realizar compras no comércio eletrônico”, diz, no relatório do estudo, o head de inteligência da Ebit/Nielsen, Keine Monteiro. E as marcas já começam a perceber o novo comportamento. A quantidade de downloads dos aplicativos dos supermercados GPA (Extra e Pão de Açúcar) dobrou entre 2017 e 2018 e já foram baixados por 7,5 milhões de clientes.

1º Redes Sociais ocupam o topo do ranking de importância para os consumidores como fonte de inspiração para as compras, diz estudo da PwC

Drones e robôs Mas o e-commerce é apenas metade da história. A outra parte se dará nas lojas físicas. E é de onde se espera a grande disrupção. O palco ideal para medir o que está por vir foi montado na semana passada na maior feira de varejo do planeta, a NRF, em Nova York. E uma das tendências mais vibrantes são as soluções relacionadas a reconhecimento por imagem, tanto de pessoas quanto de objetos. Imagine uma invasão de câmeras e sensores inteligentes cuidando das compras. É por aí.

A empresa Pensa, em parceria com a Intel, oferece um drone que faz o inventário dos itens nos pontos de venda. Com uso de inteligência artificial (IA) eles escaneiam autonomamente as prateleiras e enviam alertas a varejistas e fornecedores sobre o que realmente está disponível. O controle de estoques e o fluxo para a reposição de produtos são um dos maiores gargalos do varejo.

O varejo está de olho: instrumentos de reconhecimento visual aliados a programas de inteligência artificial vão pautar o novo jeito de consumir. À direita, a maior feira do mundo no setor, a NRF, em Nova York

Serviço semelhante é oferecido pela Trax, empresa de Cingapura, em parceria com a Fetch Robotics. Nesse caso um robô faz o que o drone realiza na solução da Pensa. Emitindo todas as informações em tempo real. “Este próximo passo para o setor de varejo reduzirá significativamente as despesas operacionais e tornará os varejistas mais ágeis, o que levará ao aumento das margens e das receitas”, diz o CEO nos Estados Unidos da Trax, Steve Hornyak.

As chamadas lojas sem dinheiro também são outro destaque na NRF. A solução CloudPick, uma startup chinesa criada em 2017, usa portas automatizadas, sensores de peso, câmeras e reconhecimento de imagem para criar uma experiência de compra sem uso de dinheiro ou filas nos caixas parecida com a da Amazon Go, em que o cliente é automaticamente cobrado ao sair da loja e recebe a notificação pelo celular. A NRF traz variações de respostas para eliminar filas em caixas.

No caso do apresentado pela startup Caper a solução é bem mais econômica para o estabelecimento: um carrinho inteligente que identifica e registra todos os produtos que alguém coloca nele e que inclui um terminal de pagamento que evita o caixa. O que o setor varejista vai viver tem a ver com uma nova onda tecnológica, mas essencialmente estará vinculado ao comportamento do consumidor. E ele será mais complexo, para dizer o mínimo. De acordo com o relatório Global Powers of Retailing 2018, da Deloitte, a jornada de compra, desde a pesquisa de preços e produtos até a finalização, será cada vez mais um “processo fluido, com os consumidores saltando entre o online e offline o tempo todo”.


Novos rituais de consumo: free gender, cannabis e luxo sem pompa

Por Cecília Andreucci (*), de Nova York

Janeiro é o mês para os profissionais de consumo e varejo do mundo todo em função da NRF, que faz uma cobiçada seleção de endereços que pautarão o futuro do varejo, além da tecnologia – a Store Tour 2019 NYC’s Most Interesting New Concepts. Seleciono as quatro marcas a seguir como ícones de vanguarda desse novo consumo.

The Plhuid Project: primeira loja autodenominada free gender

GUCCI
No segmento das loja de luxo, a Gucci Soho, a grande vedete da temporada, definitivamente é a loja de luxo menos intimidadora em que já entrei. Parece um grande galpão que combina elementos tradicionais e modernos, num prédio tombado, com ar vintage, mas ao mesmo tempo incrivelmente moderno. Nenhuma pompa. A música toca alta. Gigantes telas de LED com vídeos pós-modernos convivem harmoniosamente com as paredes de tijolos à vista e os pisos de madeira originais. Os vendedores são jovens e ecléticos, atendem os clientes de forma informal e atenciosa. Eles são chamados de Gucci Connector (“storytellers” da marca). Não é um varejo tradicional. É uma experiência de marca em quase 1.000 metros quadrados. Mais ao fundo da loja há uma pequena sala de projeção, assim como uma charmosa loja de livros de arte, moda e cultura, onde ocorrem eventos para convidados e clientes. Torça para ser convidado.

BOTTEGA VENETA
Três casas se juntaram numa esquina da Madison Avenue para materializar em quase 1.500 metros quadrados e cinco andares o que eles chamam de Maison. Vigas industriais expostas e uma maravilhosa escadaria de vidro ondulante convivem com um mobiliário refinado e uma paleta de cores suaves – cinza, verde e bege. Fomos recebidos por Gerrit Kuetzel, CEO das Américas. “Nós não acreditamos em logomarca. Acreditamos que a qualidade do produto fala por si só”. E isso é o que se encontra lá: 30% de todos os itens são feitos 100% a mão num ateliê na Itália. A loja traz também sua nova linha de mobiliário, num espaço chamado The Apartment, que também funciona como galeria de arte. A marca prima pela elegância discreta. Prefere não estar na confusão da Quinta Avenida e oferecer mais conforto ao cliente até para desembarcar e entrar na loja. Agradecemos!

THE PHLUID PROJECT
Outra loja que chamou bastante atenção foi a The Phluid Project – a primeira marca a autodenominada free gender, ou seja, busca atender qualquer classificação de gênero que possa existir na sociedade contemporânea. A marca procura não só oferecer produtos (roupas, acessórios e livros) mas também ser a base para encontros da comunidade alinhada com esses valores. Faz parcerias com grandes grifes e curadoria de produtos que atendam bem a esse exigente público. O fundo da loja tem um café, assim como uma pequena arquibancada colorida em que você pode sentar para descansar ou até trabalhar, tudo com Wi-Fi. Esse conceito está muito alinhado com o que foi discutido na NRF de espaço multipropósitos.

MEDMEN
Outra loja que foi muito debatida nesses últimos dias é a MedMen. Ela se classifica como o primeiro varejo de cannabis do mundo. Você entendeu certo! Aqui em Nova York os produtos disponíveis ainda estão limitados aos medicinais, já que a legislação também não permite seu consumo recreativo. O tema será votado pela Justiça do estado em fevereiro. Nova York é um dos 20 estados americanos (em 50) que permitem o uso medicinal da erva – outros 10 permitem o uso recreativo. Mas naqueles onde a erva já foi liberada, você poderá escolher entre mais de 1.500 espécies disponíveis, sendo atendido por um consultor que vai te explicar tudo, por meio de um catálogo moderno cuidadosamente desenhado para tirar aquela imagem hippie, geralmente associada ao produto. Tudo apresentado em tabletes num ambiente todo branco. A loja lembra vagamente o ambiente da Apple Store, tudo minimalista e moderno. Sua maior missão, segundo o executivo da marca, David Dancer, é tirar o estigma relacionado ao produto.

*Cecília Andreucci é mercadologista, mestre em consumo e doutora em comunicação.