A Abengoa, multinacional espanhola com negócios em concessão, construção e bioenergia no Brasil, entrou em processo de recuperação judicial em fevereiro do ano passado, dois meses depois de a matriz na Espanha ter tomado o mesmo destino. Responsável pela construção de boa parte das linhas de transmissão de Belo Monte, a empresa abandonou as obras e provocou um atraso monstruoso que compromete o escoamento da energia que será gerada pela usina. São 4,3 mil quilômetros de fios que caberiam à companhia espanhola instalar, mas que não serão concluídos no prazo. Os problemas dela não param por aí.

Até agora, o que se sabia era que a Abengoa parecia ser vítima da má gestão de seus ativos. Porém, DINHEIRO teve acesso aos documentos de uma investigação, que ainda está em curso, da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Receita Federal, que apura uma série de fraudes cometidas pela unidade de bioenergia da multinacional espanhola no País. Segundo o inquérito policial 0261/2015 do MP Federal em São Carlos (SP), há indícios de emissão de notas frias e celebração de contratos fictícios de prestação de serviços entre a Abengoa e duas empresas, a Dester Santa Cruz esmatamento e Terraplanagem e a Casagrande Serviços Agrícolas.

Além de reduzir a carga tributária e o recolhimento de impostos, o suposto esquema levantou suspeitas devido a saques em espécie de valores milionários. Isso dificultou, até aqui, rastrear o destino desse dinheiro. A primeira parte dessa força-tarefa, já concluída, foi a apuração cumprida pela Receita Federal que identificou, entre os anos de 2008 a 2012, uma repetição de procedimentos de pagamento por prestação de serviços não realizados. Entre operações não comprovadas e aquelas baseadas em documentos inidôneos, a Receita Federal encontrou R$ 45,9 milhões em pagamentos feitos pela Abengoa às duas empresas. A Dester, por exemplo, chega a ser descrita como uma empresa inexistente.

Na mira: Policiais deixam a sede da Eletronorte na Operação Choque, da PF
Na mira: Policiais deixam a sede da Eletronorte na Operação Choque, da PF (Crédito:Divulgação)

Na fiscalização realizada, a empresa de terraplanagem não tinha caminhões para transporte, tratores, máquinas e equipamentos ou empregados no local. Os balanços anuais não apresentavam bens, o que fez os auditores concluirem haver “indícios de situação incompatível entre a vultosa quantidade de notas fiscais de prestação de serviços”. Devido a essa investigação, a Abengoa recebeu uma multa de R$ 24,1 milhões, mais juros de R$ 5,8 milhões. Segundo o relatório, “há fortes indícios de prática de crime de lavagem de dinheiro, haja vista que o modus operandi das operações da Abengoa indicam que os recursos financeiros foram depositados nas contas bancárias da Dester e da Casagrande, por meio de transferências bancárias, muitas vezes complexas, com o objetivo de dissociá-los de sua verdadeira origem.

Posteriormente, esses recursos foram sacados na ‘boca do caixa’ na instituição Cooperativa de Crédito Santa Cruz das Palmeiras – Sicoob Crediçúcar e passaram a ser utilizados para o fomento de atividades financeiras do esquema, aparentando serem atividades normais e legítimas” (leia abaixo). O documento conclui dizendo que há “existência de fraude planejada, articulada e cuidadosamente executada por longo período de tempo, evidenciada por um padrão preciso de comportamento irregular e repudiado pela lei, não apenas tributária”. Neste momento, a Polícia Federal investiga para que finalidade esse esquema foi criado e como ele era utilizado tanto pela unidade de bioenergia como pelos outros negócio do grupo Abengoa.

Além desse inquérito, a Abengoa foi incluída em outra investigação. Na Operação Choque, realizada em abril de 2015, o ex-diretor da Eletronorte, Winter Andrade Coelho, foi preso sob a acusação de participar de um esquema de pagamento de propina para viabilizar contratos públicos. Segundo a investigação, a fraude na licitação dos contratos teria movimentado R$ 98 milhões. Para receber os recursos dos fornecedores beneficiados pelo esquema, Winter Coelho abriu, em nome de parentes, a C&C Consultoria, que funcionava apenas como uma empresa de fachada. Uma das companhias citadas no inquérito é a Abengoa, que firmou um contrato de R$ 92 milhões com a Eletronorte.

Na semana passada, o fundo de investimentos americano Texas Pacific Group (TPG) mostrou-se disposto a pagar R$ 1 bilhão pelos ativos em operação da Abengoa, como as transmissoras Manaus e Norte Brasil. A consultoria financeira para o negócio está com a G5 Evercore, de Corrado Varoli, ex-presidente do Goldman Sachs para a América Latina. Os projetos que não foram concluídos não fazem parte da proposta. A Abengoa não seria o primeiro ativo problemático adquirido pelo fundo de investimento americano, que se especializou nesse tipo de negócio desde que comprou ativos da enrolada Enron. Mas os valores podem mudar dependendo de outras duas ações que tem potencial de reduzir o patrimônio da empresa espanhola.

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Para onde foi o dinheiro?:  Inquérito sobre os supostos crimes investiga a movimentação financeira realizada pela Abengoa. Na terceira imagem, a conclusão sobre o esquema de transferência e saques em espécie

A mineira Tabocas, especializada na construção de linhas de transmissão e subestações de energia, reivindica na Justiça uma participação acionária de 3,9% na Manaus Transmissora e de 10% na Norte Brasil Transmissora, os dois ativos em operação mais valiosos da multinacional. Num acordo assinado entre elas, a Tabocas teria direito a uma participação minoritária nesses empreendimentos. DINHEIRO teve acesso a um documento, assinado pelo presidente da Abengoa, Luis Solaro Mascari, reconhecendo a participação da Tabocas e afirmando que eles estavam avaliando o total de ações desse negócio. A Justiça bloqueou essas cotas, o que impede a venda integral da Manaus e da Norte Brasil. O potencial valor dessas participações pode chegar a R$ 200 milhões.

Com dívida de R$ 3,5 bilhões no Brasil, a Abengoa tem procurado insistentemente encontrar interessados para os seus ativos. No próximo dia 31 de março, os 1.193 credores estarão reunidos para avaliar a proposta do TPG. O desejo da Abengoa é empacotar todos os negócios de energia nesse processo de venda. A unidade de bioenergia não foi incluída na recuperação judicial, mesmo com seguidos prejuízos: entre 2008 e 2012, por exemplo, a perda foi de quase R$ 500 milhões. Há a expectativa de vendê-la por R$ 1 bilhão. Mas, a busca por interessados no conjunto dos negócios tem sido complexa. Nos últimos meses, especulou-se sobre o interesse da canadense Brookfield, da chinesa State Grid e das brasileiras Taesa e Casa dos Ventos por diferentes partes da Abengoa.

Sem linhas: A geração de energia da Usina de Belo Monte está prejudicada em razão dos atrasos da Abengoa, que não vai concluir a construção de mais de 4,4 mil km de fios de transmissão
Sem linhas: A geração de energia da Usina de Belo Monte está prejudicada em razão dos atrasos da Abengoa, que não vai concluir a construção de mais de 4,4 mil km de fios de transmissão (Crédito:Daniel Teixeira/Estadao)

No entanto, todos condicionaram a negociação a uma decisão do governo sobre a isenção de multas por atraso na execução das obras, a extensão dos contratos de concessão e uma nova remuneração pela prestação de serviços. A Aneel tentava revogar os contratos, que caducaram em razão dos atrasos. Mas a juíza Maria da Penha Nobre Mauro, da Quinta Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela recuperação judicial da Abengoa, impediu essa tentativa da agência em razão desses ativos serem essenciais para evitar a falência. A Advocacia Geral da União recomendou, na quinta-feira 9, à Aneel e ao Ministério de Minas e Energia que sigam a determinação judicial e refaçam os cálculos.

“Todos no setor elétrico sabiam que a Abengoa estava atrás do dinheiro barato do BNDES, por isso ela dava um deságio alto pelos empreendimentos”, afirma um ex-executivo da empresa espanhola. “Daí ela passou a pedalar, a não entregar as obras e seu nível de endividamento ficou gigantesco. A Aneel foi alertada, mas disse que não podia fazer nada.” Conhecida pela sua agressividade nos leilões das linhas de transmissão de energia, a Abengoa conquistou mais de duas dezenas de contratos com deságio médio de 30% sobre o preço mínimo exigido pelo governo federal. Com isso, passou a ser a companhia com o recorde, em quilômetros de extensão, de projetos em construção ao mesmo tempo no País. Mas, essa sede acabou se transformando num desastre.

Dos cerca de 10 mil quilômetros de linhas, cerca de 60% não foram entregues. Apenas 13 empreendimentos foram concluídos e 15 estão em diferentes fases de desenvolvimento, um atraso médio de 1,7 mil dias, segundo o último relatório da Aneel, publicado no final de 2016. Insistentemente procurada pela reportagem, a Abengoa não retornou o pedido de esclarecimento e as questões encaminhadas a ela. Consultados, o TPG, a G5 e a Tabocas não quiseram se pronunciar. A Polícia Federal informou que não se manifesta sobre investigações. A Receita Federal firmou que não presta esclarecimentos sobre verificações de infração fiscal. DINHEIRO não conseguiu contatar Winter Coelho.