Até o início de setembro, apenas investidores e operários chineses, além de alguns executivos de bancos de investimento, haviam ouvido falar da Evergrande. Segunda maior incorporadora do país asiático, a empresa era pouco conhecida além das fronteiras da China. É um grupo gigantesco. Emprega 200 mil pessoas e gera 3,8 milhões de empregos indiretos. Vende produtos de poupança e investimento vinculados à aquisição de residências para milhões de pessoas, e tem 1,5 milhão deles atualmente em aberto. Os recursos captados destinam-se, no momento, à construção simultânea de 1,3 mil condomínios residenciais, horizontais e verticais, em 280 cidades chinesas.

Os interesses do grupo vão muito além da construção civil. Ele possui engarrafadoras de água mineral, produz veículos elétricos, opera parques temáticos e é proprietário de um time de futebol, o Guangzhou Evergrande. Para abrigar seus jogos, a Evergrande está construindo um estádio em forma de flor de lótus orçado em US$ 1,7 bilhão. E gastou cerca de US$ 185 milhões para desenvolver o que deve ser a escola de futebol mais cara do mundo. Tudo isso sustentado por uma dívida de US$ 305 bilhões que corria sérios riscos de não ser honrada.

Um pagamento de juros de US$ 83,5 milhões de um título emitido por uma de suas controladas, a Hengda Real Estate Group, estava previsto para a quinta-feira (23). Na véspera, a companhia informou, sem dar mais detalhes, que a situação havia sido “resolvida em negociações privadas”. Para garantir que não haverá terremotos nas finanças, na mesma quarta-feira o Banco do Povo, o banco central chinês, injetou US$ 13,5 bilhões no sistema financeiro, em uma espécie de recado de que tudo estava bem.

No entanto, há vários outros compromissos da Evergrande que vencerão nas próximas semanas, e cada um deles trará uma dose de incerteza. Por enquanto, a crise já fez suas vítimas,tendo provocado protestos de investidores que haviam comprado imóveis e levado à paralisação de obras por toda a China.

OBRAS PARADAS Evergrande tem 1,3 mil condomínios em construção em 280 cidades chinesas, e os imóveis podem não ser entregues. (Crédito:REUTERS/Carlos Garcia Rawlins)

Por seu porte e pelo número de potenciais lesados, a situação da Evergrande guarda uma semelhança e várias diferenças com uma crise que coincidentemente ocorreu em meados de setembro: a quebra do banco de investimentos americano Lehman Brothers, em 2008. As principais diferenças são que o terremoto provocado por sua provável débâcle estará restrito às fronteiras chinesas e a um punhado de bancos. No caso do Lehman Brothers, todo o sistema financeiro mundial foi afetado. A semelhança é que, tal como ocorrido há 13 anos nos Estados Unidos, o evento vai provocar mudanças profundas na relação entre o governo chinês e o mercado, que estará sujeito a uma fiscalização muito mais rígida.

Ao forçar a empresa a reestruturar suas dívidas de modo a defender os pequenos investidores e ferir os tubarões do mercado, o presidente chinês Xi Jinping poderá obter dois trunfos com uma só tacada. Vai se cacifar para tentar um terceiro mandato presidencial em 2022 e aumentará o controle do governo sobre a economia, algo sempre precioso em um país comunista de partido único e imprensa sob rígida vigilância. Os analistas avaliam que a demora deliberada do governo de lançar um pacote de ajuda para a Evergrande é um sinal para os demais empresários do setor, para evitar as tentações capitalistas da especulação e a não desafinarem da linha do partido. “As demais construtoras deverão sentir os efeitos dos problemas com a Evergrande”, disse a gerente de portfólio da gestora JLP em Cingapura, Suang Eng Tsan.

Como uma crise dessas pode acometer uma empresa tão grande que opera em um setor tão importante para a economia chinesa? A situação decorre de algumas características específicas da China. Apesar de seu crescimento exponencial, o país ainda tem um sistema financeiro pouco desenvolvido e não há nada muito parecido com uma previdência social oficial. Daí a elevada taxa de poupança das famílias chinesas, que sabem que têm de guardar dinheiro para o futuro.

AMIGOS NOS PODER Hui Ka Yan, fundador da Evergrande: proximidade com o Partido Comunista e US$ 10,3 bilhões de patrimônio. (Crédito:Zhong zhenbin/Imaginechina via AFP)

ESPECULAÇÃO Um dos principais veículos de investimento para a população são os imóveis. O chinês médio trabalha, poupa e entrega o dinheiro a incorporadoras. As empresas usam esse dinheiro para comprar terrenos, desenvolver novos empreendimentos e o ciclo continua. As grandes construtoras apareceram no país com as privatizações do setor habitacional, nos anos 1990, e se tornaram gigantes com a enxurrada de crédito na década de 2010. A demanda também mudou. A urbanização rápida e a ausência de alternativas de investimento acabaram por direcionar boa parte das economias dos chineses para o mercado imobiliário e tornaram os imóveis a principal reserva de valor. Mais de 80% das vendas são realizadas para pessoas que já possuem um imóvel e compram um segundo ou terceiro.

No caso da Evergrande, isso transformou seu fundador, o empresário Hui Ka Yan, de 62 anos, no terceiro homem mais rico da China, com uma fortuna avaliada pela Forbes em US$ 10,3 bilhões. Sua trajetória é clássica. Teve origem humilde, começou a trabalhar cedo em uma siderúrgica, foi subindo na empresa e costurando laços cada vez mais fortes com os membros do Partido Comunista. Deixou o emprego em 1996 para fundar uma construtora que, no princípio, vendia apartamentos populares. Assim como ele, algumas dezenas de empreendedores tornaram-se bilionários devido às mudanças no mercado e à complacência do governo com relação à compra de terrenos, mudanças na urbanização e conivência dos bancos estatais para emprestar. Na China, o setor imobiliário responde por 15% do Produto Interno Bruto (PIB) diretamente, chegando a 25% com efeitos indiretos. Isso levou a excessos. “Hoje a China tem quase 1 bilhão de metros quadrados de imóveis vazios. Cerca de 30 milhões de famílias poderiam ser abrigadas. É um número estrondoso, mesmo para a população chinesa”, disse o economista e consultor Bao Gao Lin, nascido na China e com cidadania brasileira.

IMPACTO SOCIAL Evergrande tem 200 mil e funcionários e gera 3,8 milhões de empregos indiretos. (Crédito:Noel Celis/AFP)

A novidade é que desde o fim de 2020 o governo iniciou políticas de aperto monetário e regulatório no setor, em linha com a diretriz de que “casas são para morar e não para especular”. Há cerca de dois meses, no fim de julho, o governo lançou restrições pesadas aos setores imobiliário, de tecnologia e educacional. No caso dos imóveis, Pequim limitou a capacidade de alavancagem e de endividamento, o que fez as ações desabarem no início de agosto e começou a preocupar os investidores.

IMPACTOS Segundo o analista da Suno Alberto Amparo, o crédito fácil e a expansão da economia chinesa levaram esse mercado a um superaquecimento nos últimos anos. “Os preços dos terrenos vinham subindo mais de 10% ao ano, todos os anos, o que levou à especulação”, disse. A abundância de recursos devida às políticas monetárias frouxas levou as incorporadoras chinesas a entrar na dança em um ritmo eufórico. Elas passaram a comprar terrenos cada vez mais caros e a se alavancar cada vez mais, até um ponto em que os negócios não faziam mais sentido. “O crédito barato fez as empresas lançarem empreendimentos para gerar valor”, disse Amparo. “O crédito cresce exponencialmente e em algum momento a conta precisa ser paga.” Esse momento chegou.

INDIGNAÇÃO POPULAR Compradores de imóveis protestam diante da sede da empresa: 1,5 milhão de proprietários podem perder suas economias. (Crédito:Noel Celis/AFP)

A diferença com relação à quebra do Lehman Brothers é que o impacto será muito menos global. No Brasil, a desaceleração do setor de construção civil deverá reduzir a demanda por minério de ferro, devido à baixa no consumo de aço. “Mais da metade do aço produzido no mundo vai para a construção civil”, disse Amparo. Não por acaso, as cotações do minério no porto chinês de Dalian recuaram 25% desde que o governo restringiu a alavancagem das incorporadoras chinesas, com um impacto direto nas ações da Vale, que lideram as transações na bolsa basileira — e já vêm pressionando o Ibovespa. Na última semana, os papéis da mineradora acumularam baixa de 10,3%. A queda das exportações brasileiras de minério vai pressionar o câmbio devido à redução da entrada de dólares. O impacto será drástico. Alimentos e combustíves ficarão mais caros, elevando ainda mais a inflação. Isso deve obrigar o Banco Central a elevar ainda mais os juros. Resta torcer para que a Evergrande seja grande demais para quebrar.