As trocas de farpas entre líderes europeus e o Brasil nos últimos meses, em paralelo às declarações verborrágicas do presidente Jair Bolsonaro, especialmente em questões relacionadas ao meio ambiente, não têm impedido o avanço das cláusulas do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia. As negociações, no entanto, deixam claro quem é metrópole e quem é colônia. Na última semana, o Brasil decidiu abrir por sete anos uma cota de importação anual de 32 mil veículos da Europa com tarifa de 17,5% (metade da alíquota atual) assim que o acordo Mercosul-União Europeia (UE) entrar em vigor. Se entrar. Após esse período, começará o mecanismo de redução da tarifa, tecnicamente chamado de desgravação, até chegar a 0 nos oito anos seguintes. Em troca, os 27 membros no bloco europeu aceitam reduzir dos atuais 9% para 0 a tarifa para o café solúvel brasileiro quatro anos depois da entrada em vigor do acordo birregional.

Em franco processo de desindustrialização em vários setores, sobretudo na cadeia automobilística, o Brasil tem ficado para trás no novo ciclo de investimentos globais das montadoras, especialmente no que diz respeito ao carro elétrico. Sem incentivos para descarbonizar seus motores, as maiores companhias do setor – como GM, Volkswagen, Tesla e Toyota – consolidam na China, nos Estados Unidos e na Europa suas linhas de montagem e de fornecedores. Por esta razão, o a área automotiva é vista com uma das mais sensíveis do acordo entre os dois blocos. Para a economista e cientista política Luciana Ghiotto, os termos colocado à mesa são negativas aos integrantes do Mercosul. “Como está, representa uma aceitação total de um modelo no qual o bloco se torna um fornecedor de matérias-primas vinculadas ao extrativismo agrário”, disse.

CAMINHOS E TERMOS — O acordo de livre comércio Mercosul-UE ainda depende da ratificação dos governos e parlamentos dos 27 membros do bloco, mas sofre resistência de países-chave, como a França. O presidente Emmanuel Macron, que já sofreu com piadas e comentários jocosos de Bolsonaro sobre a aparência de sua mulher, Brigitte Macron, tem sido o líder europeu mais resistente ao livre comércio entre as partes. Além dos temas ambientais, é sabido que a França teme danos ao agronegócio do país. “O Mercosul tem sido uma pedra que acorrenta grande parte da indústria brasileira, e esse acordo poderá agravar a situação se os termos na negociação não forem bem pensados”, afirmou José Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec, no Rio de Janeiro.

IstockCARROS EM ALTO MAR Brasill abre por sete anos uma cota de importação de 32 mil veículos vindos da Europa. (Crédito:Istock)

O Itamaraty afirmou, em nota, que, em razão do interesse público nas negociações concluídas entre o Mercosul e a União Europeia, os dois lados decidiram publicar os cronogramas de liberalização recíproca, que os documentos não são definitivos e poderão sofrer modificações adicionais em decorrência do processo de revisão formal e jurídica, ainda em andamento.

Atualmente, a liberalização das regras tributárias e alfandegárias do acordo Mercosul-UE prevê um cronograma gradual de 15 anos. A ideia é dar tempo para as empresas se adaptarem aos novos contratos e regras, além do aumento da concorrência. No caso dos automóveis, nos primeiros sete anos, os quatros países darão cota para entrada de 50 mil veículos europeus com uma vantagem preferencial de 50%. Ou seja, o carro europeu será submetido à alíquota de 17,5%, enquanto o automóveis dos Estados Unidos ou do Japão vai continuar pagando 35%. Essa cota de 50 mil foi distribuída entre os países do Mercosul de acordo com o comércio histórico. É por isso que a cota brasileira é maior, de 32 mil veículos. A Argentina dará cota de 15,5 mil, o Uruguai, de 1.750, e o Paraguai, de 750 veículos. As importações fora da cota continuarão com tarifa de 35%, até que comece a desgravação.

Assim como o café, o acordo firmado flexibiliza as tarifas de importação para frutas brasileiras. Para uva de mesa procedente do Mercosul, por exemplo, a eliminação da tarifa na UE será imediata. Depois de 20 anos de negociações entre o Mercosul e a União Europeia, o tratado coloca a indústria europeia em competição com países vendedores de café e de frutas. Qualquer semelhança com os tempos de colônia, não é mera coincidência.