Marco legal, tendências, opinião pública: quando se trata do direito ao aborto, os Estados Unidos representam claramente uma exceção no cenário internacional.

– Com Pequim e Pyongyang –

Na falta de uma lei federal, coube à Suprema Corte dos Estados Unidos garantir, em 1973, o direito ao aborto, que, no entanto, se limita a um feto “viável”, ou seja, até o momento em que tenha a capacidade de sobreviver fora do útero, entre 22 e 24 semanas de gestação.

Em uma audiência na quarta-feira, que pode marcar uma mudança histórica, a mais alta corte do país pareceu querer recuar.

O líder da Suprema Corte, o conservador John Roberts, declarou-se especialmente “inquieto” ao considerar que “os Estados Unidos compartilham com a China e a Coreia do Norte o limite da viabilidade”, enquanto no resto do mundo as restrições são maiores.

Usando o mesmo argumento, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, um cristão ultraconservador, havia pedido à Suprema Corte que removesse os Estados Unidos das ditas “margens radicais” para adaptar sua legislação a um modelo mais ocidental.

Os Estados Unidos, de fato, estão entre os países com os prazos mais longos permitidos ao aborto.

Segundo estudo do Centro de Direitos Reprodutivos, cerca de 67 países no mundo, principalmente ocidentais, autorizam a interrupção voluntária da gravidez sem justificativa.

Além disso, os Estados Unidos fazem parte de uma dezena de países com o limite mais estendido, junto com China, Reino Unido (24 semanas), Canadá (até o parto) e várias regiões da Austrália.

No entanto, esses limites são enganosos, porque em muitos países também existem exceções “econômicas, sociais ou médicas” para abortar até o momento do parto, segundo Julie Rinkelman, advogada que defende o “status quo” na Suprema Corte.

– Em outros estados –

Acima de tudo, a advogada acrescenta em sua resposta ao juiz Roberts, esses países “não têm o tipo de barreiras que temos aqui”.

Os estados conservadores do centro e do sul do país efetivamente multiplicaram as leis restritivas nos últimos anos, forçando o fechamento de inúmeras clínicas de aborto, a tal ponto que apenas uma em cada seis permanece aberta.

Desde 1º de setembro, o estado do Texas proíbe o aborto a partir das seis semanas de gestação, o que ainda não gerou uma decisão da Suprema Corte. Em contrapartida, o aborto é muito acessível em estados progressistas vizinhos, como Califórnia ou Nova York.

Poucos países apresentam diferenças tão marcantes entre estados ou regiões.

“Somos uma aberração em termos da evolução dos direitos ao aborto”, estima Nancy Northup, presidente do Centro para os Direitos Reprodutivos. “A tendência desde os últimos 25 anos é flexibilizar as medidas, com avanços recentes no México, Argentina e Benin”.

Em comparação com outras democracias ocidentais, os Estados Unidos também se destacam por seu acirrado debate sobre o aborto. 75% dos suecos, 65% dos britânicos, 64% dos franceses, 61% dos italianos e espanhóis… acham que o aborto deve ser autorizado sempre que uma mulher quiser, enquanto apenas 42% dos americanos compartilham desta opinião, de acordo com uma pesquisa Ipsos de 2021.

E nesses países, que tiveram fortes mobilizações na época da legalização do aborto, o debate enfraqueceu posteriormente.

Nos Estados Unidos, entretanto, após a decisão de 1973, o clima piorou especialmente quando o Partido Republicano usou a luta antiaborto para mobilizar eleitores da direita mais conservadora e religiosa.

O ex-presidente Donald Trump personifica o extremo dessa estratégia: em 1999, o bilionário se declarou a favor dos direitos das mulheres de “escolher”, mas sua vitória nas eleições presidenciais de 2016 se deve em parte à promessa de nomear juízes contra o aborto à Suprema Corte.

Ao longo de seu mandato, Trump conseguiu incluir três magistrados conservadores no mais alto órgão judicial do país e essa estratégia parece estar prestes a dar frutos.