Como todas as mudanças potencialmente devastadoras, essa começou discreta. Na noite da quarta-feira (26), os gestores do fundo imobiliário Maxi Renda, do BTG Pactual, divulgaram um fato relevante. Eles informaram os cerca de 490 mil cotistas do fundo, o mais popular do mercado, que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) havia determinado uma mudança no cálculo do valor do dividendo que poderia ser distribuído. As implicações eram potencialmente enormes e poderiam abalar o principal atrativo desses fundos, que é o pagamento regular de dividendos mensais isentos de impostos, facilidade que atraiu 1,5 milhão de brasileiras e brasileiros nos últimos dois anos.

Atendendo a um pedido do BTG na terça-feira (1), a CVM suspendeu temporariamente o efeito da decisão. Os gestores terão agora 15 dias para defender a não implantação da mudança. Enquanto isso, o tradicionalmente estável índice Ifix, que reúne os fundos imobiliários mais negociados na B3, apresentou solavancos atípicos (observe o gráfico). E ainda deverá haver mais volatilidade nos próximos dias, à medida que os gestores forem obrigados (ou não) a se adaptar à nova regra.

“A intenção daCVM foi evitar que os gestores distribuíssem dividendos quando os fundos têm prejuízos contábeis, mas isso provocou uma incerteza enorme” Raphael Pires sócio do escritório Candido Martins Advogados 

O susto no mercado ocorreu porque a CVM reescreveu uma decisão dela própria, publicada em 2014. Naquele momento, a Comissão estabeleceu parâmetros claros para a remuneração dos investidores. É obrigatório distribuir no mínimo 95% dos lucros. Os 5% restantes destinam-se a cobrir os custos do fundo, incluindo a remuneração do gestor (que toma as decisões de investimento) e do administrador (que controla a entrada e saída de recursos e a compra e a venda dos ativos imobiliários). Tudo muito simples. Até a própria CVM indagar, há alguns dias: quando o gestor diz “lucro”, do que ele está falando?

CAIXA E COMPETÊNCIA Vamos explicar o problema a partir de um exemplo. Suponha que um fundo imobiliário possua um só ativo, um galpão logístico que vale R$ 100 milhões. O imóvel foi alugado por dez anos por R$ 1 milhão por mês. Se o fundo não gastar nada com manutenção, tudo isso será lucro. E será possível pagar R$ 950 mil por mês aos cotistas.

Até aí, tudo muito claro. Porém, as normas contábeis exigem que o proprietário “desvalorize” seu imóvel em 10% todos os anos, a chamada depreciação. Assim, a cada ano haverá um “prejuízo” contábil de R$ 10 milhões, que não tem nada a ver com o valor de mercado do imóvel nem com o aluguel pago pelo inquilino. Ou seja, haverá uma “despesa” contábil mensal de R$ 833 mil, quase 90% do valor destinado mensalmente aos cotistas. Qual será o lucro correto: R$ 950 mil (o valor do aluguel) ou R$ 117 mil (o aluguel subtraído da depreciação)? Pelo regime de caixa é R$ 950 mil. Pelo regime de competência é R$ 117 mil.

A turbulência foi provocada porque, na decisão de 2014, a CVM determinou que o lucro fosse calculado pelo regime de caixa. Agora, a determinação, cuja aplicação foi suspensa temporariamente, é que o cálculo seja feito pelo regime de competência. “A intenção da CVM foi evitar que os gestores distribuíssem dividendos ainda que os fundos apresentassem prejuízos contábeis, mas isso provocou uma incerteza enorme”, disse o advogado especialista em fundos imobiliários Raphael Pires, sócio do escritório Candido Martins Advogados. E a depreciação é apenas um ponto. Há dezenas de outras variáveis e critérios contábeis que hoje simplesmente não são considerados pelos gestores na hora de calcular quanto pagar ao investidor, e que agora poderão ter de entrar nessa conta.

Ao alterar o cálculo, a CVM poderá impedir que os fundos com ativos físicos, chamados “de tijolo”, distribuam rendimentos mensais regularmente. Os gestores poderão ser obrigados a reconhecer as despesas com depreciação, que são apuradas duas vezes por ano, e passar a pagar as remunerações semestralmente. O impacto também pode ser intenso nos fundos de fundos, que reúnem cotas de várias carteiras para reduzir os riscos. Ao depender dos resultados de outras carteiras, os gestores poderão ter de fazer provisões para prejuízos contábeis futuros, alterando a mecânica de pagamentos que tanto agrada o investidor.


Apesar de a decisão anunciada no dia 26 de janeiro referir-se apenas ao fundo Maxi Renda, em um comunicado posterior a CVM advertiu que o entendimento “pode ser aplicado a outros casos”. Quem conhece a indústria avalia que haverá choro, ranger de dentes e uma discreta pressão. “Boa parte do crescimento dos fundos imobiliários deveu-se aos produtos dos bancos de varejo”, disse um gestor que prefere não se identificar. “As grandes instituições financeiras e o próprio setor da construção civil, que está cada vez mais dependente dos fundos para vender seus imóveis, já estão se preparando para um lobby poderoso.” Aguarde as cenas dos próximos capítulos.