As cenas de horror como as das fotos que abrem a reportagem pareciam ter saído de um longa-metragem de ficção hollywoodiano. Mas era tudo real. Centenas de membros da ultradireita racista dos Estados Unidos se reuniram na pacata cidade universitária de Charlottesville, de cerca de 50 mil habitantes, no Estado de Virgínia, para protestar. O ato tentava conter o plano de retirada de uma estátua em homenagem a Robert E. Lee (1807-1870), general do Exército Confederado durante a Guerra Civil Americana. Extremistas de direita o consagram como um símbolo histórico do poder branco sulista, por ter lutado contra os Estados do Norte para manter o sistema de escravidão dos negros.

O clima de ódio em Charlottesville atingiu seu ápice quando um carro, conduzido por um racista, passou por cima de dezenas de pessoas, deixando um rastro de morte, feridos e da mais pura intolerância. A ativista de direitos humanos e assistente jurídica, Heather Heyer, foi uma vítima fatal. O ato escancarou o grave problema que assola os EUA desde o fim da escravidão negra, em 1863, e que foi acentuado durante a campanha presidencial de Donald Trump no ano passado. O país está cada vez mais dividido. O discurso raivoso proferido contra negros, homossexuais, judeus e imigrantes ao longo de movimentos realizados nas últimas semanas acirrou os ânimos.

O protesto em Virgínia foi considerado por entidades de direitos humanos como o maior ato de supremacia branca nos últimos 40 anos nos EUA. O dramático episódio fez com que empresas, executivos e políticos democratas e republicanos arregaçassem as mangas para impedir o avanço do movimento. Executivos de grandes empresas, como Merck, Intel e Under Armour, desembarcaram de conselhos do governo Trump. Google, Go Daddy, Facebook, Paypal e Airbnb adotaram medidas para conter a disseminação do ódio na internet. “A corrida de Trump para a presidência intensificou a direita radical, que viu nele um campeão da ideia de que a América é fundamentalmente um país de homens brancos”, disse Mark Potok, especialista em direita radical e escritor americano, no artigo “The year in hate and extremism”.

Violência: durante o embate entre neonazistas e ativistas de direitos humanos, um racista jogou o
carro contra a multidão e matou a assistente jurídica Heather Heyer (Crédito:Ryan M. Kelly/The Daily Progress via AP)

Se as investigações do FBI sobre a interferência russa nas eleições americanas impactaram negativamente o governo de Trump, os desdobramentos do trágico episódio de Charlottesville têm sido o pior entrave ao longo dos seis meses de mandato do republicano. Colocando em xeque, inclusive, sua capacidade para governar. O clima azedou ainda mais após o presidente se pronunciar. Em um de seus discursos, Trump afirmou que “muitos lados” são culpados pelos conflitos na cidade. Mesmo após receber duras críticas por ter amenizado os movimentos que cultuam o ódio, o presidente voltou a polemizar ao dizer que a esquerda também foi muito violenta, assim como que algumas pessoas que marchavam ao lado dos nazistas não eram racistas.

A desastrosa fala de Trump provocou abalos para todos os lados. Políticos democratas e republicanos endureceram a oposição ao líder e empresários abandonaram a base governista, ou por receio, ou como retaliação às atitudes de Trump. Especialistas e a imprensa internacional criticaram duramente o presidente americano. Em sua mais recente edição, a revista britânica The Economist publicou um artigo no qual diz que Trump é politicamente inepto, moralmente estéril e temperamentalmente impróprio para o cargo. “O presidente americano cometeu um erro grave de avaliação ao equiparar os dois protestos”, diz Marcos Castrioto de Azambuja, ex-embaixador do Brasil na França e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. “Ele precisa encontrar uma nova narrativa e falar para todos os americanos, não apenas para a parcela que o elegeu. Há um desgaste real de sua influência. Pela primeira vez, o mundo avalia que Washington não tem sabedoria para estabelecer a ordem global.”

Com sua estratégia voltada aos negócios e seguindo a cartilha de campanha, que prometia trazer o emprego de volta ao americano, Trump fundou conselhos empresariais, chamados de Conselho Empresarial e o Fórum de Política e Estratégia. Ao menos sete executivos abandonaram seus postos desde a sua criação, no início do ano. A grande debandada aconteceu depois do pronunciamento sobre Charlottesville. O primeiro líder a deixar o barco foi Kenneth Frazier, executivo-chefe da Merck, um dos maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, que registrou um faturamento de quase US$ 40 bilhões em 2016. Ao deixar o projeto, o CEO mencionou a necessidade de que os líderes americanos rejeitem expressões de ódio, intolerância e supremacia racial.

País segregado: grupos de supremacia branca e neonazistas intensificam movimentos e espalham ódio contra negros, homossexuais e imigrantes (Crédito:Emily Molli/NurPhoto)

Depois do CEO da Merck, foi a vez de Brian Krzanich, diretor-geral da fabricante de chips Intel. Ao justificar sua renúncia, ele chamou a atenção sobre o grave prejuízo que a instabilidade política tem causado em assuntos críticos e pediu que os líderes governamentais condenassem a violência racista em Virginia. O presidente da marca esportiva Under Armour, Kevin Plank, foi o terceiro a desembarcar dos conselhos de Trump. Com um tom mais ameno, ele alegou que a empresa se dedica à inovação e ao esporte, e não à política. As outras companhias que preferiram não ter seus nomes vinculados ao governo republicano de Trump foram a Alliance for American Manufacturing e a gigante química 3M.

Para conter a crise, na quarta-feira 16, Trump agiu como Trump e anunciou em seu Twitter que havia encerrado os comitês. “Embora os conselhos consultivos não tivessem um grande papel nas decisões do dia a dia, o protesto público contra as declarações de Trump enviou um sinal ao setor empresarial”, diz Laura Carlsen, especialista política do Center for International Policy, de Washington D.C. “As grandes empresas têm responsabilidade e interesse em defender as leis e as instituições americanas. E a violência da supremacia branca viola ambos.”

Polêmica: em discurso no lobby da Trump Tower de Nova York, no dia 15 de agosto, o presidente voltou a receber críticas por amenizar os atos de violência de neonazistas (Crédito:AFP Photo / Jim Watson)

O triste episódio neonazista também fez com que grandes companhias do Vale do Silício se posicionassem para conter o avanço de grupos de ódio. Gigantes como Google e Facebook passaram a atuar para deletar grupos, eventos e informações de sites de grupos radicais. Exemplo disso foi a exclusão de um dos principais canais para a organização da marcha. Intitulado como de “Unir a Direita”, o site foi classificado pela Organização Americana de Direitos Humanos Southern Poverty Law Center como o maior difusor de ódio dos EUA. Tanto o Google quanto a Go Daddy, maior administradora de domínios na internet, apagaram vestígios do canal.

Já o Facebook, liderado pelo Mark Zuckerberg, excluiu páginas de oito grupos de discussão da extrema direita e cancelou o evento marcado em sua rede social para a marcha União da Direita. “As empresas têm responsabilidades políticas, embora nas últimas décadas tenha havido um comportamento muito irresponsável”, diz Jean-Pierre Lehmann, professor emérito de economia internacional da escola suíça IMD. “Há muita desconfiança nos EUA em relação às grandes empresas e o grande negócio deve tentar recuperar a confiança. Acredito que alguns CEOs percebem isso.”

Assim como o Google e o Facebook, o serviço online para hospedagem Airbnb cancelou a reserva de ativistas em Charlottesville, após ser alertada por usuários. Em carta aberta, o presidente-executivo da empresa, Brian Chesky, afirmou que “a violência, o racismo e o ódio demonstrado pelos neonazistas e os supremacistas brancos de extrema-direita não devem ter lugar neste mundo.” Já o aplicativo de transferência de dinheiro virtual Paypal tem suspendido, desde abril, a conta de usuários classificados como ativistas de extrema-direita. Após a violência dos últimos dias em Virginia, Franz Paasche, vice-presidente da empresa, divulgou nota informando que a companhia não aceita pagamentos ou doações para atividades que promovam o ódio ou intolerância racial.

Embora os chamados grupos de ódio existam nos Estados Unidos há séculos, como o próprio Ku Klux Klan, criado no fim do século 19, a vitória de Trump na Casa Branca tem sido forte aliada pela expansão dos ideais de segregação e de extrema direita. De 2015 para 2016, o número de grupos de ódio saltou de 892 para 917 em todo o território americano (veja gráfico “O drama americano” acima). Além disso, usuário assíduo da rede social Twitter, durante a campanha presidencial, Donald Trump republicou em sua conta posts de supremacistas brancos.

Em uma deles, havia a falsa notícia de que pessoas negras eram responsáveis por 80% dos assassinatos de pessoas brancas. Para conter a pior crise de seu mandato, Trump demitiu na sexta-feira 18 Steve Bannon, estrategista-chefe de seu governo e dono do site de ultradireita Breitbart News.“Os grupos de neonazismo dos Estados Unidos têm a ilusão de que estão protegidos pela liberdade de expressão”, diz Lilian Furquim de Campos Andrade, professora de economia internacional da Escola de Economia FGV. “Elas saíram das redes sociais e mostraram os rostos.”