Oscar Lima Alfa, mayday, mayday, mayday.” Se a atual situação das companhias aéreas pudesse ser exemplificada em um diálogo entre pilotos de avião e controladores de voo, essa provavelmente seria a síntese da conversa. No jargão aeronáutico, trata-se de um pedido urgente de socorro, diante de um risco iminente de queda. Mas fora do campo das metáforas, em chão firme, a crise econômica gerada pela pandemia da Covid-19 derrubou as receitas das empresas de aviação comercial no Brasil e no mundo, com prejuízos incalculáveis em longo prazo e efeitos ainda imprevisíveis – turbulência jamais enfrentada por um setor que globalmente emprega 68 milhões de pessoas e simboliza a espinha dorsal do lazer e dos negócios internacionais.

Pelos cálculos da Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA, na sigla em inglês), a pandemia acarretará em perdas de US$ 314 bilhões em 2020, uma redução de receita de 55% em relação a 2019. Mais do que a queda no faturamento, o hiperendividamento em dólar é uma imensa nuvem de tempestade na rota das empresas. A dívida mundial total do setor, atualmente em US$ 430 bilhões, deve superar US$ 550 bilhões até o fim de dezembro, alta de 28% na comparação com o mesmo período do ano passado. Cerca de US$ 200 bilhões serão necessários para salvar as empresas. Nesse contexto, é quase uma unanimidade que só existe uma opção de rota para a sobrevivência da indústria aérea: resgate com dinheiro público. “O auxílio dos governos está ajudando a manter a indústria”, afirmou o francês Alexandre de Juniac, diretor-geral da Iata. “O próximo desafio será impedir que as companhias aéreas afundem sob o peso da dívida que esta ajuda está criando.”

AEROPORTO DE CONGONHAS Com mais de 90% dos voos cancelados, empresas aéreas precisam de socorro estatal para sobreviver. Nos mais movimentados terminais do País, a cena é de desolação. (Crédito:Rubens Cavallari)

Em todo o planeta, do aumento de US$ 120 bilhões nas dívidas das companhias aéreas para este ano, uma fatia de US$ 67 bilhões é referente a empréstimos de governo e bancos estatais, além de impostos diferidos e garantias de empréstimos. Os US$ 53 bilhões restantes se referem a empréstimos contraídos com bancos privados, dívida do mercado de capitais, débitos de novos arrendamentos operacionais e acesso a novas linhas de crédito. Praticamente todas as empresas aéreas apelaram para suspensão temporária de pagamento mensal do leasing de aeronaves – grande parte deles controlados por fundos de pensão internacionais –, de taxas aeroportuárias e de contratos com grandes bancos.

Dos recursos que os governos já se comprometeram neste ano para resgatar as empresas, US$ 67 bilhões deverão ser pagos em médio e longo prazos. Do total, US$ 34,8 bilhões se referem a subsídios salariais, seguido por financiamento de ações (US$ 11,5 bilhões) e desoneração ou subsídio fiscal (US$ 9,7 bilhões). “Menos de 10% dos auxílios do governo serão adicionados ao patrimônio da companhia aérea. Isso muda completamente o quadro financeiro da indústria”, afirma Juniac. “Pagar a dívida dos governos e credores privados significará que a crise vai durar muito mais do que o tempo necessário para a demanda de passageiros se recuperar.”

Indiscutivelmente, a rota de voo para as companhias saírem da crise é uma das mais arriscadas de toda a história econômica recente. Para o presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), Eduardo Sanovicz, a crise provocada pelo coronavírus é um “cenário como jamais se viu”. O executivo avalia que as três maiores companhias aéreas brasileiras (Azul, Gol e Latam) entraram crise um pouco mais fortalecidas do que empresas de outros setores, por causa da falência da concorrente Avianca. Segundo ele, no entanto, a queima de caixa tem sido brutal. “A gente não cria demanda, apenas atende. Para as viagens de lazer, se as pessoas não tiverem dinheiro não vão viajar”, afirma. “As viagens de negócios dependem da retomada de eventos, congressos, feiras. E não há cenário de retorno desse setor no curto prazo.”

Cadier, ceo da latam Para ele, a crise do setor interrompe uma trajetória de crescimento nos últimos anos. A operação brasileira da companhia ficou de fora do pedido de recuperação nos EUA. (Crédito:Silvia Costanti)

O presidente da Abear afirma que a retomada do setor aéreo também vai depender das políticas do governo federal para a recuperação econômica. As empresas aéreas pleiteiam com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) um pacote de ajuda em forma de empréstimos, no total de R$ 6 bilhões – R$ 2 bilhões para cada uma das três maiores companhias. O BNDES estuda se comprometer com um terço do total, enquanto os bancos privados entrariam com outros R$ 4 bilhões. Pela proposta, cerca de 75% da quantia será em forma de títulos de dívida, e 25% poderá ser convertido em ações. “Vamos atravessar essa crise. Mas como vamos atravessar, vai depender das políticas, especialmente do crédito do BNDES”, afirma Sanovicz.

Menor do que o pleiteado ao governo, o aguardado socorro estatal, por meio do BNDES, tem sido fonte de disputas e conflitos dentro do própria staff bolsonarista. “O governo não vai pegar dinheiro público, dinheiro que falta para saúde e educação, e simplesmente salvar uma grande empresa, não é assim. É da vida ser abatido, é do mercado”, disse o ministro Paulo Guedes, em abril. Já o time técnico do Ministério da Infraestrutura, comandado por Tarcísio de Freitas, trabalha nos bastidores para evitar que as empresas quebrem e prejudiquem toda a cadeia de transporte de passageiros e de logística do País.

O consenso é que a oferta de socorro estatal de R$ 2 bilhões às empresas é considerado insuficiente e fora do ‘timing’. No Brasil, atualmente as empresas estão operando com uma malha aérea mínima, que é aproximadamente 90% menor se comparada com o mesmo período de 2019, redução que foi acordada entre as companhias aéreas e o governo. Thiago Carvalho, advogado especialista em direito aeronáutico e integrante da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB no Rio de Janeiro, diz que a expectativa de crescimento da aviação no mundo para 2020, antes da pandemia, era de aproximadamente 4%. “Para a América Latina a alta seria menor, de 1,8%, muito em razão de problemas em Argentina, México, e Venezuela.”

DECOLAGEM FRUSTRADA Na avaliação do executivo Jerome Cadier, CEO da Latam no Brasil, a crise é uma espécie de decolagem abortada em alta velocidade, já que antes da chegada do novo coronavírus o setor da aviação estava em um momento bastante positivo no País. “Depois dos anos difíceis de 2015 a 2017, estávamos voltando a crescer”, afirma. “Em 2018 e, principalmente, 2019 estávamos em recuperação do setor, colocando mais aviões para voar e fazendo investimentos pesados em cabines novas e contratação de tripulantes.”

Com a pandemia, no entanto, tudo parou muito rápido. Em menos de três semanas vieram a queda nas vendas até a paralisação dos voos, inicialmente na Europa, e nas semanas seguintes nos Estados Unidos e no Brasil. “Este é um setor que precisa de muito giro. Usamos o valor das vendas do dia para bancar as operações realizadas naquele mesmo dia”, explica Cadier.

A Latam, com ações negociadas na bolsa de Nova York, precisou recorrer ao Chapter 11, uma versão de recuperação judicial e o último recurso antes da falência. Para Cadier, o instrumento é muito utilizado nos Estados Unidos para garantir que as empresas consigam se reestruturar de forma sustentável do ponto de vista financeiro. “As grandes montadoras americanas, assim como American e Delta, já entraram com esse pedido no passado e tiveram êxito”, afirmou. “Ele permite que a empresa continue operando, vendendo e pagando os colaboradores enquanto negocia as dívidas, o que deve ocorrer num prazo de 12 a 18 meses.” O executivo destacou também que a filial brasileira não entrou no Chapter 11, mas sim as subsidiárias no em Chile, Colômbia, Equador, Peru e Estados Unidos. As operações da Argentina e do Paraguai também ficaram de fora do processo.

SANOVICZ, DA ABEAR O presidente da associação afirma que a crise provocada pelo coronavírus é um “cenário como jamais se viu”.

SEM MARGEM O problema é que o setor aéreo, há tempos, convive com margens de lucro espremidas, e muitas vezes negativas. Segundo Leonardo Nascimento, sócio-fundador da Urca Capital Partners, os resultados de companhias aéreas são bastante afetados em depressões de demanda devido aos altos custos com o leasing de aeronaves, folha salarial e, principalmente, pelas variações cambiais. “As margens do setor já são bastante apertadas e qualquer flutuação relevante na demanda já consome o caixa de curto prazo das companhias”, afirmou.

Ao analisar o volume de voos das empresas, fica evidente o cenário de desespero. A Latam realizava em média 750 voos por dia no País antes da pandemia. Em maio, a empresa operou cerca de 35 voos diariamente. Após essa forte redução, o grupo anunciou aumento gradual de suas operações em junho, passando de 5% para 9% da capacidade pré-crise, operando 74 rotas domésticas no Brasil, além de retomar de forma reduzida as rotas internacionais São Paulo-Frankfurt, São Paulo-Londres, São Paulo-Madri, São Paulo-Santiago e Santiago-Miami. Para julho, a previsão é atingir 18% da sua capacidade anterior à crise. Já na Gol, que tem quase 16 mil colaboradores, a maior parte deles está trabalhando em home office, em férias ou de licença não remunerada. Aproximadamente 6,2 mil colaboradores (38% do quadro total) estão em licença não remunerada ou tiveram seus contratos de trabalho suspensos.

GOMES NETO, DA EMBRAER A fabricante brasileira de aviões está perto de obter US$ 600 milhões com o BNDES e bancos privados. (Crédito:Claudio Gatti)

RENEGOCIAÇÃO Na Latam, a palavra de ordem é renegociar tudo o que for possível. Além do corte de voos e salários, como parte das primeiras medidas emergenciais a empresa também negociou com fornecedores, pedindo redução de custos e postergação dos prazos de pagamento para equilibrar o fluxo de caixa. Em relação aos trabalhadores, ainda haverá novas negociações. “Agora que já conhecemos melhor os impactos da crise estamos novamente em contato com os sindicatos para definir como agir a partir de julho”, disse o CEO Cadier. Ele acredita que as soluções possam envolver licenças não remuneradas de 12 meses ou rotativas, mas que certamente o ajuste será grande. Por esse motivo, a empresa tem tido conversas diretamente com seus colaboradores por meio de vídeos e webcasts com perguntas ao vivo para explicar o que está acontecendo neste momento da crise.

Como parte do esforço para escapar da crise, a Azul Linhas Aéreas fechou acordo para repassar de sua frota 53 aviões Embraer 190/195, da serie E1, para a empresas LOT, da Polônia, e a Breeze, start-up americana criada por David Neeleman, fundador também da Azul. Os prazos, porém, estão indefinidos. Essas aeronaves seriam substituídas por outras 50 novas unidades do modelo Embraer E2, mais modernas e econômicas. As entregas previstas para acontecerem entre 2020 e 2023, a um ritmo de uma aeronave nova a cada duas semanas, foram adiadas para 2024.

Segundo John Rodgerson, CEO da Azul, não se sabe quando o remanejamento de frota será concluído, já que as incertezas ainda existem sobre o tempo de retomada da demanda da aviação e, por consequência, quando LOT e Breeze necessitarão de todas as aeronaves. “Temos um ótimo relacionamento com a Embraer e estamos muito animados com o E2. Infelizmente, tivemos que adiar nossos planos de pegar mais desses aviões até que a economia se recuperasse”, disse Rodgerson, em entrevista a jornalistas do setor. “Na medida em que o tamanho do mercado mude após a Covid-19, queremos estar preparados.”

PERDASEM ALTA No primeiro trimestre, a Embraer registrou prejuízo de R$ 1,3 bihão, sete vezes superior ao do mesmo período de 2019. (Crédito:Ed Viggiani)

PROTOCOLOS As autoridades aeronáuticas do mundo todo, juntamente com a Organização Internacional da Aviação Civil, Associação Internacional de Transportes aéreos e outros órgãos, estão criando padrões a serem seguidos pelos países com a intenção de possibilitar um retorno seguro da aviação civil, sem que esse modal se torne vetor de reinfecção para os países. Aqui no Brasil não há nada normatizado, mas existem instruções e orientações expedidas pela Anvisa e Anac, voltadas tanto para os passageiros, quanto para as empresas aéreas e aeroportos. Também foi criado um grupo de trabalho chamado Retomada da Aviação Civil pós-Covid-19, por meio da Portaria Anac 1126, de 23 de abril deste ano, cujo objetivo é acompanhar a retomada das operações aéreas nos aeroportos brasileiros e propor estratégias voltadas à segurança, ao desenvolvimento e à sustentabilidade da aviação civil.

As empresas que operam no Brasil estão adotando medidas que incluem filas transversais, alternadas e espaçadas nos balcões de check-in, distribuição de álcool em gel, obrigatoriedade do uso de máscaras a bordo, novos processos de limpeza e desinfecção profunda das aeronaves, além de redução da interação física com os passageiros. Segundo as empresas aéreas, a frota brasileira está equipada com sistema de filtragem que renova o ar a cada 3 minutos e captura aproximadamente de 99% das partículas no ar.

As tripulações também têm orientado os passageiros para que se acomodem nas poltronas de acordo com a sua preferência, mantendo entre si o maior distanciamento possível. Para elevar os níveis de segurança, higiene e prevenção a bordo, as companhias têm implementado processos intensos de limpeza nos voos, que englobam desde a pulverização do interior das aeronaves até a limpeza de todas as superfícies de contato, com aplicação de álcool 70% e outros materiais indicados pela Anvisa e órgãos internacionais. Um saneamento físico que se espera chegue também ao saneamento financeiro.

Em apuros, Embraer também depende de socorro

Sem ter para quem vender e com clientes lutando para sobreviver, a fabricante brasileira de aviões Embraer deve obter em junho um financiamento junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a bancos privados no valor de US$ 600 milhões (R$ 3,3 bilhões) para atender a sua demanda de jatos executivos e comerciais para os próximos meses, disseram fontes do governo em condição de sigilo. As negociações, lideradas pela próprio presidente Francisco Gomes Neto, estão em ritmo acelerado. Espera-se que o crédito seja liberado nas próximas semanas. Além dos recursos do BNDES, a companhia deve receber injeção de bancos como Bradesco, Santander, Itaú, Citibank, Morgan Stanley e Natixis.

No balanço do primeiro trimestre deste ano, a fabricante brasileira de aeronaves anunciou que tem no horizonte cerca de US$ 16 bilhões (R$ 86,8 bilhões) em encomendas firmes para os próximos anos. No mesmo balanço, a Embraer registrou um prejuízo líquido de R$ 1,3 bilhão no primeiro trimestre de 2020, perda quase sete vezes superior à registrada nos três primeiros meses do ano passado. O resultado foi pressionado pelo diferimento de imposto de renda e contribuição social, com efeito negativo de R$ 571,2 milhões, por uma provisão adicional para perdas de crédito durante a pandemia. O balanço também apontou como fatores para o prejuízo a queda de R$ 108,6 milhões no valor da companhia aérea Republic Airways Holdings, na qual a Embraer qual tem participação. Outro destaque foram os custos de separação ligados ao fim da parceria estratégica com a Boeing, de R$ 96,8 milhões.