Com uma trajetória pautada por polêmicas, quebra de decoro e falta de tato político, o presidente Jair Bolsonaro precisará aprimorar sua capacidade de mediação e pacificação se quiser manter viável o plano de fazer o Produto Interno Bruto (PIB) crescer 3,6% neste ano. Em meio à briga de gigantes dentro da Esplanada dos Ministérios, o chefe do Executivo se mostra dividido entre o discurso liberal (e prometido em campanha eleitoral) defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a agenda desenvolvimentista e keynesiana do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Antes aliados, os dois protagonizaram embates públicos que foram abafados pelo governo em 2020 para passar a sensação sintonia entre as pastas. Agora, com a chegada de 2021, as duas forças econômicas dentro do governo voltaram a conflitar.

Guedes, cujas promessas não cumpridas se acumulam, já disse que mandará ao Congresso uma proposta de imposto digital à parte da Reforma Tributária, que focará nas privatizações e liderará esforços de ajuste fiscal. Marinho, apelando ao lado populista do presidente, garante que a reativação de obras, a continuidade dos auxílios, além da continuidade das reformas e os programas de geração de riquezas são o melhor caminho para que o País atravesse mais essa crise.

Interlocutores de Guedes afirmam que a aproximação do presidente com Marinho não é de agora, mas que, até então, o ex-funcionário de Guedes que foi alçado ao cargo de ministro do Desenvolvimento Regional no início do ano passado não se mostrava tão próximo do chefe. O sentimento geral é que, com chegada da campanha eleitoral de 2022, Bolsonaro caminhe para uma política econômica mais paternalista. “Há quem diga que o período para Guedes aprovar sua agenda liberal acabou em 2020, mas o ministro segue firme em seus planos”, disse o interlocutor.

De férias, o titular da Economia precisou ir a Brasília para participar de um encontro com outros ministros na quarta-feira (6). O motivo teria sido, novamente, a falta de tato do presidente ao falar com o público. Um dia antes, Bolsonaro afirmara a apoiadores que “o Brasil estava quebrado”, um discurso aposto ao de Guedes, que prega uma saída rápida e sustentável da crise provocada pela Covid-19.

O encontro, com a presença de 17 dos 23 ministros, teve a participação do presidente da Caixa, Pedro Guimarães. Rogério Marinho não foi. Assessores que estavam presentes no encontro disseram que, ao longo de uma hora e meia, o tema da conversa foi a tentativa de sintonizar o discurso dos representantes do governo.

Em tom sério, Guedes teria dito que qualquer insinuação econômica prejudica diretamente os rumos da atividade brasileira. O puxão de orelha, que também atingiu o Bolsonaro, surtiu efeito. Horas depois, novamente com apoiadores, o presidente tratou de falar que o Brasil está crescendo e as coisas vão melhorar.

PONTO PARA GUEDES Depois da reunião, Bolsonaro resolveu voltar a falar das promessas de campanha, entre elas a atualização da tabela de Imposto de Renda. “Eu queria mexer na tabela do IR. O cara me cobra: ‘compromisso de campanha’. Mas não esperava esta pandemia pela frente. Nos endividamos em aproximadamente R$ 700 bilhões. Complicou mexer nisso aí”, afirmou. Nessa toada, Guedes prometeu avançar com os projetos que foram postergados devido à pandemia. Entre os focos estão a reforma administrativa, programa ambicioso que envolve o plano DDD (desindexar, desvincular e desobrigar) e retira o carimbo em quase 95% do Orçamento.

Há ainda os planos de avançar com a Reforma Tributária. Mas, entendendo que o assunto é moroso e pode impor custos à imagem do governo, Guedes sinalizou interesse em enviar, em paralelo, um projeto de Lei ao Congresso para tratar sobre a implementação de um novo imposto, que incidiria em todas as transações digitais. O tema, polêmico, tem sido tratado como a CPMF do século 21 e também deverá receber duras críticas no Parlamento. Outro vespeiro que Guedes diz estar pronto para mexer é o que trata da privatização de importantes ativos estatais. A lista ainda é a mesma da campanha (como Correios, Eletrobrás e Porto de Santos), mas as dificuldades são maiores do que em 2018.

Consultor de desestatização da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, Antonio Cândido afirma que o processo, principalmente da Eletrobrás, se tornou ainda mais difícil depois dos problemas no Amapá. “Nenhum país no mundo abre mão de controlar algo que pode prejudicar a vida de milhões de pessoas de modo instantâneo”, disse.

Com relação ao Porto de Santos, o desafio fica por conta dos contratos hoje em vigor de uso e exploração no terminal, a relação conflituosa com o Estado de São Paulo e a resistência dos trabalhadores locais. “A privatização dos Correios talvez seja mais simples, mas como há algumas obrigações do serviço previstas na Constituição, seria necessário uma PEC [Proposta de Emenda à Constituição] ou algum tipo de garantia de que o serviço se manteria na mesma escala atual”, afirmou.

CORRENDO ATRÁS Enquanto o governo não decide qual política econômica adotar, o fim do auxílio e o desemprego levam milhares de brasileiros a sair em busca de alternativas para recompor a renda. (Crédito:Rivaldo Gomes)

REAÇÃO DE MARINHO

Se Guedes promete manter o otimismo e as promessas em 2021, Rogério Marinho quer se aproveitar do timing para se colocar como o ministro que reativou a atividade econômica. Para isso ele, uma das vozes mais atuantes na aprovação da nova Previdência em 2019, quer mesclar outras reformas estruturantes com ações de reativação imediata da economia. Tais soluções são velhas conhecidas dos últimos governos e envolvem, principalmente, financiamento para estimular empregos, fomentar cadeias produtivas e assim aumentar a renda de modo célere.

Todas essas promessas, que seduziram presidentes desde a era Vargas, também agradam Bolsonaro, principalmente em um momento em que ele deve subir o tom populista em busca de um eleitorado que poderá já ter se esquecido do uxílio emergencial ano que vem. Nesse sentido, Marinho defende que o embate com Guedes em busca de mais orçamento seguirá e que tais dinâmicas são naturais do cargo que ambos exercem. À DINHEIRO, Marinho reforçou que Brasil precisa de reformas e comprometimento com a situação fiscal, mas ressaltou que, por ser um país tão desigual, o governo fez bem ao prover o auxílio emergencial e garantir os recursos para combater a pandemia. “Qual o problema de termos 110% ou 120% de dívida em relação ao PIB se isso significar o bem estar da nação?”, questionou ele em evento no final de dezembro.

Para além dos recursos públicos para reativação da economia, o ministro argumenta que os esforços da pasta no sentido de promover o investimento privado nas obras públicas são formas diretas de reduzir a desigualdade social e fomentar o emprego e renda.  “Nessa linha, estão o Marco Legal do Saneamento, a reestruturação dos Fundos de Desenvolvimento Regional, que passariam a funcionar como estruturadores de projetos para PPPs e concessões, e consultoria contratada junto ao PNUD para identificar caminhos que ajudem a ampliar os investimentos privados na carteira de obras do MDR”, informou a pasta.

Se o caminho que o presidente irá seguir ainda está nebuloso, os desafios imediatos estão mais que claros. A estimativa de que o desemprego atinja 16% da população neste ano, segundo previsão do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) evidencia que o tempo de pensar acabou e as medidas deixaram de ser urgentes e se tornaram vitais. Em uma das poucas ações recentes, Bolsonaro elevou o salário mínimo de 2021 para R$ 1.100, acima do valor aprovado pelo Congresso, de R$ 1.088. Como cada real a mais no piso representa um aumento de R$ 351 milhões nas despesas federais, especialmente com aposentadorias e pensões do INSS, a benesse de R$ 33 no salário mínimo em 2021, na comparação com o valor previsto no Orçamento, implicará uma alta de cerca de R$ 11 bilhões nas despesas para o governo federal. “Ao basicamente repor a inflação o presidente aumenta o gasto público e não gera ganho real e significativo para o trabalhador”, disse o economista Welber Barral, estrategista de comércio exterior do Banco Ourinvest e ex-secretário nacional de Comércio Exterior entre 2007 e 2011.Para Barral, tal aumento é mais um sintoma de que o discurso alarmista de Bolsonaro não parece coerente. “A declaração do Bolsonaro de que País está quebrado é muito dramática. O Brasil tem aumento a dívida interna, mas possui reservas internacionais que dão conforto para a economia”, afirmou.

Se as coisas não vão tão mal como diz Bolsonaro e nem tão boas quanto pinta Guedes, o motivo é o teto de gastos. E até isso está ameaçado com essa “despretensiosa” elevação do salário mínimo. A explicação para a desconfiança se justifica. O valor do teto de gastos foi reajustado em apenas 2,13%, ou seja, o limite para as despesas da União em 2021 será o mesmo válido para 2020, corrigido pela inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O percentual corresponde ao IPCA acumulado em 12 meses até junho de 2020.

Não há dúvidas de que as contas públicas passarão por um teste de fogo neste ano. Com o fim do estado de calamidade pública e do “orçamento de guerra” que autorizou o governo a ampliar despesas emergenciais para combater a pandemia, o Orçamento da União voltará a ser determinado pelas regras fiscais convencionais em 2021, ou seja, limitado pelo teto de gastos. A regra que proíbe o aumento de despesas da União, além da inflação, está cada vez mais pressionada pelos pagamentos obrigatórios e pela inflação dos últimos meses de 2020. O crescimento da dívida pública também impõe um desafio adicional ao governo nos primeiros quatro meses de 2021, quando o Tesouro precisará rolar quase R$ 700 bilhões em títulos.

RISCO DE PARALISAÇÃO Em 2020, o estado de calamidade pública dispensou o cumprimento da meta fiscal. No final do ano passado, o Congresso aprovou um rombo de R$ 247 bilhões no orçamento. Evidentemente, junto com a volta da meta em 2021 vem o temor de contingenciamentos ao longo do ano, afetando serviços e a manutenção da máquina pública. “Existe o risco muito grande de paralisação de várias políticas públicas ou até mesmo da máquina pública”, disse o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto. No fim das contas, não importa se o comandante do barco é desenvolvimentista ou liberal. Quando ele naufraga, as teorias afundam junto.