Por volta das 8 da noite da quarta-feira, 13, o telefone tocou na fazenda da família Bush no Texas. Horas antes a Suprema Corte havia decidido que a recontagem manual de votos na Flórida deveria ser interrompida. O republicano George Walker Bush, àquela altura vencedor da eleição no Estado, sabia que a sentença pouco valeria se seu adversário democrata, o vice-presidente Al Gore, decidisse encontrar algum novo meio de esticar a disputa. Entretanto, o telefone tocou na sede da fazenda. E pela terceira vez desde a madrugada de 7 de novembro, quando a noite da eleição presidencial terminou sem vencedor, era Gore na linha. ?Desta vez, prometi ao governador que não ligaria novamente?, contou o democrata a todo o país na mesma noite, em rede nacional de televisão, ao anunciar que desistia da luta e abria caminho para Bush tornar-se o 43º presidente da história dos Estados Unidos. O próprio Bush foi em seguida à televisão para, humilde e conciliador, anunciar sua disposição de levar adiante ?o sonho americano?. Ele será capaz?

 

Bush tem sua própria fórmula, e não se pode dizer que ela seja ingênua. Em seu primeiro pronunciamento, deu um recado. Evocou o exemplo do terceiro presidente americano, Thomas Jefferson, cujo nome enfrentou mais de trinta votações no Congresso até ser aprovado à Presidência. Foi difícil entrar, mas de lá Jefferson saiu como um dos pais da unidade da pátria, hoje imortalizado num monumento em Washington. Nos bastidores, para não errar, segue passo a passo um caminho já trilhado por seu pai, George Bush, recolhendo auxiliares do período em que ele esteve na Casa Branca, entre 1989 e 1993. A começar pelo vice-presidente Dick Cheney, o ex-chefe do Conselho de Segurança na gestão de Bush pai, que o filho pinçou diretamente da ala conservadora dos republicanos como forma de unir seu partido.

Cheney desde já é apontado como homem forte do futuro governo. Andrew Card, ex-secretário de Transportes na administração do pai, já foi indicado oficialmente como chefe de gabinete do novo presidente. O general Colin Powell, porta-voz oficial do governo Bush durante a Guerra do Golfo, é pule de dez para a chefia do Departamento de Estado. A professora Condollezza Rice, à epoca líder do Departamento de Assuntos Soviéticos do Conselho de Segurança, deverá, agora, assumir o cargo principal do conselho. Na Secretaria de Saúde, Elizabeth Dole, que ocupou o mesmo cargo no governo de Bush pai, deverá voltar ao cargo. Para a área econômica, Bush filho segue seu próprio faro. Ao cargo mais importante, o de Secretário do Tesouro, aparecia como favorito o chairman do Chase Manhattan Corp., Walter Shipley, mas também havia chances para Lawrence Lindsey, chefe da área econômica da campanha. Ele pretende, ainda, fazer concessões aos adversários, a começar pela nomeação do ex-senador democrata Sam Noom para a Secretaria de Defesa.

 

?Bush é veloz. Quer chegar à reunião dos presidentes da Alca, em abril, no Canadá, com o fast-track aprovado?, disse a DINHEIRO o assessor republicano William Perry. ?As relações com o México terão prioridade, mas ele dará mais atenção ao comércio com a América Latina do que Gore daria.? Neste sentido, há uma boa chance para o Brasil, cujos representantes deverão reconhecer a importância dos assessores do novo presidente para avançar no diálogo. Acontece que Bush é marcadamente descentralizador. No governo do Texas, para o qual se elegeu em 1993 e foi reeleito em 1997, mostrou-se muito mais um coordenador de equipe do que um poderoso chefão. Prefere fazer despachos pessoais breves com auxilares diretos a debruçar-se sobre longos relatórios antes de uma decisão importante.

Pelo ângulo que se olhe, seu trabalho na Casa Branca será árduo. Na política, o país está rachado. ?Esta eleição será lembrada durante muito tempo como um pleito decidido por uma Suprema Corte conservadora em favor de um candidato conservador?, registrou em editorial o The New York Times. Para sempre a história vai reter o fato de, nacionalmente, Bush ter perdido por cerca de 300 mil votos a eleição direta para o vice-presidente Al Gore. Na economia, até mesmo o futuro vice Cheney já disse que o ciclo de oito anos continuados de prosperidade acabou. ?Estamos em recessão?, anunciou. É prudente, antes de considerar Bush fraco para a tarefa, lembrar que quem joga contra ele costuma perder. Ele já vem sendo chamado pela mesma imprensa americana que troçou de suas gafes e frases tortas de candidato em campanha como ?o político mais subestimado da história dos EUA?.

A DISCRETA DINASTIA

Ao darem dois presidentes aos americanos, os Bush despontam como o clã político mais poderoso da história do país

Marco Damiani

 

Das eleições mais tumultuadas da história americana emerge para o mundo uma dinastia política discreta, conservadora e poderosa. Mais forte, agora, que a mais famosa entre todas. Os Bush, ao darem aos Estados Unidos o segundo presidente saído de seu próprio clã, enfeixam a partir do Texas um poder jamais experimentado pelos polêmicos, trágicos e espalhafatosos Kennedy, de Massachusetts, cujo ápice se deu na presidência de John F., no início dos anos 60. Com George W., a partir de janeiro, e, antes, com seu pai George entre 1989 e 1993, eles não apenas chegam pela segunda vez à Casa Branca como podem exibir, ainda, um governador, o caçula Jeb, da Flórida, e, no passado, um senador, o avô Prescott. Em toda a história, o único precedente de pai e filho terem ocupado a Presidência aconteceu em 1825, quando Quincy Adams, filho do segundo presidente, John Adams, venceu as eleições. ?Dinastia parece alguma coisa hereditária?, disse o futuro presidente quando confrontado com a idéia. Ele, porém, não a rechaça de todo. ?Nós herdamos um bom nome, mas não herdamos votos. Temos de conquistá-los.?

 

É certo que, para isso, os Bush têm meios sólidos. Como candidato, George W. bateu o recorde de doações a um político em campanha presidencial, ao levantar recursos de mais de US$ 100 milhões, o dobro do que foi conseguido por Al Gore. Nada acidental. A família Bush encarna a própria elite endinheirada americana. Prescott, o avô, foi um ativo homem de negócios em Wall Street depois do crash de 1929, fez fortuna e elegeu-se senador por Connecticut. Nesta condição, tornou-se amigo pessoal e parceiro de golfe do presidente Dwight Eisenhower. Casou-se com Dorothy, uma campeã de tênis de caráter perfeccionista e competitivo, e criou o filho George Herbert Walker Bush, que viria a se tornar presidente, sob valores conservadores. Ficou daquela época o conceito de que o ex-presidente nunca foi tratado como uma criança, mas sempre como um pequeno homem cheio de responsabilidades. No final dos anos 40 a família resolveu se instalar no Texas e George, já casado com Barbara Pierce, ela própria uma legítima representante da aristocracia americana e parente distante do presidente Franklin Pierce, conseguiu ampliar a fortuna paterna ao fundar e desenvolver, na década seguinte, a indústria petrolífera Zapata.

Em 6 de julho de 1946 nasce George Walker Bush. Desde sempre foi cercado pelas benesses da riqueza e influência. O pai não apenas emprestou-lhe o primeiro nome, como fez questão de depositar sobre o primogênito toda a atenção que apenas em doses homeopáticas recebera na infância. Os cuidados com o pequeno George, então com sete anos, só fizeram aumentar quando sua irmã Robin, aos 4, morreu vítima de leucemia. Sem nunca ter sido um aluno brilhante, ele cresceu à sombra da família, completada pelos irmãos Jeb, Neil, Marvin e Dorothy.

?Quando eu era jovem e irresponsável, eu era jovem e irresponsável?, acostumou-se a dizer George W. sobre o período de sua adolescência até o casamento com Laura Welch, em novembro de 1977. Eles se conheceram num churrasco na casa de amigos comuns e se casaram apenas três meses depois. Juntos, dividiram maus momentos, muitos deles patrocinados pelo excesso de consumo de álcool. ?Jim Bean?, lembrou Bush, em entrevista para a tevê americana, sobre as preferências de ambos pela marca canadense de bourbon. ?Mas quem gostava mais era ela?, completou apontando para a mulher. A comparação com os Kennedy, neste ponto, outra vez favorece os Bush. O máximo que a imprensa descobriu sobre sua fase etílica foi um acidente de automóvel sem vítimas. Suspeitas veladas de que Bush tenha usado drogas nunca foram comprovadas. ?Em que isso importa??, rebatia o candidato em campanha a cada vez que o tema surgia, sem desmentir e muito menos confirmar as insinuações. Na corrida pelos votos, ele ganhou pontos pelo fato de, alcoólatra no passado, garantir ter largado a garrafa vinte anos atrás. Nem mesmo um vídeo veiculado pela Internet, em que ele aparecia cambaleante durante um casamento recente, abalou a crença de que, agora, George W. é um abstêmio.

 

Do baú de cruéis verdades da imprensa sobre os Kennedy, ao contrário, não param de sair novidades. De tempos em tempos sempre é escrito um novo capítulo no estoque de escândalos sexuais patrocinados pelo então presidente John em seu período na Casa Branca. O patriarca Joseph não escapa, décadas após sua morte, da acusação de ter erguido a fortuna da família pela venda de bebidas durante a fase da lei seca nos Estados Unidos, nos anos 30. Nem mesmo Robert Kennedy, assassinado em 1967 quando estava em campanha para a presidência, é poupado. Ele também teria sido amante de Marilyn Monroe e revelado, na alcova, segredos de Estado. Quanto a acidentes em automóveis, a comparação é inevitável. Em 1969, o senador Edward Kennedy afundou o carro que dirigia num rio em Chapaquiddick. Sua secretária e amante, Mary Jo Kopechne, ao seu lado, morreu. Com ela se foram as chances de um terceiro Kennedy tentar a Presidência.

Hábil, sem dar espaço para que seus pontos fracos de antigo playboy e beberrão sobressaíssem durante a campanha, George W. mostrou uma biografia bem editada. Nem o fato de não ter ido ao Vietnã, mas apenas para a Força Aérea do Texas, pesou. Destacou de seu perfil o bom golpe de, com US$ 600 mil, ter se unido a investidores, no início dos anos 80, na compra do time de beisebol Texas Rangers. Dez anos depois, ao vendê-lo, embolsou US$ 14,9 milhões e garantiu sua própria fortuna. O time, ainda, lhe rendeu a popularidade necessária para se candidatar ao governo do Texas, em 1994, e ganhar a eleição. Reeleito, mirou na Casa Branca e acertou. Atinge a Presidência para continuar a escrever uma história que, apesar do longo passado que a sustenta, está apenas no começo.

 

?Assim como meu pai?

A começar pelo nome, George Walker Bush, o presidente eleito dos EUA, e George Herbert Walker Bush, o ex-presidente, em muito se parecem. No estilo pessoal, porém, ainda que o filho tenha seguido passo a passo a formação do pai, as diferenças são acentuadas. Enquanto o ex-presidente nunca foi um campeão de comunicação, o futuro é craque, cheio de frases que não fazem mal a ninguém. ?A maior influência da minha vida é Jesus Cristo?, gosta de dizer. Nos quase 18 meses em que esteve em campanha, ele mais pareceu um artista do que um político. O oposto do que Bush pai fora em 1992. Naquele ano, no exercício da presidência, ele fez tudo certo para que sua campanha de reeleição desse errado. Ele conseguira seu primeiro mandato na esteira da popularidade de Ronald Reagan, de quem foi vice, e achou que seria fácil vencer outra vez. Mas, sisudo, foi incapaz de mostrar-se à altura da simpatia do então governador de Arkansas, Bill Clinton. Agora, quando pela figura do filho pode se reconhecer sucedendo o próprio Clinton, Bush pai obteve uma deliciosa vingança. Muitos de seus antigos auxiliares voltarão ao poder. O filho, assim como o pai, deve governar voltado para política externa, liberdade comercial e conservadorismo político.