Quando as tropas russas cruzaram a fronteira e invadiram o território ucraniano, na madrugada de 24 de fevereiro, os observadores militares já sabiam que o conflito seria breve e também que seu vencedor já era conhecido. A disparidade de tudo — tropas, população e território — tornava inimaginável uma vitória ucraniana. Ninguém esperava que os países do Ocidente, reunidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), apoiassem militarmente a Ucrânia. Mesmo pequeno, o risco de uma escalada atômica é grande demais. Vladimir Putin é um presidente autocrático, sem controles externos, e legalmente autorizado a permanecer no poder até 2036. O tipo de sujeito de quem é melhor manter distância. Assim, pacifistas e democratas ao redor do mundo se conformaram em protestar nas ruas e nas redes sociais e mandar bons pensamentos para os ucranianos.

Porém, na maior surpresa histórica da era moderna, a movimentação de empresas privadas, estimuladas por consumidores e acionistas, está conseguido penalizar a Rússia pela invasão ao país vizinho além do que seria esperado. As perdas não são militares, mas econômicas. E, à medida que as retaliações corporativas foram crescendo durante os dias imediatamente posteriores à invasão, elas começaram a criar uma ameaça tão grande para a economia que o ministro russo das relações exteriores, Serguei Lavrov, disse na quarta-feira (2) que “o presidente Biden é experiente e sabe que não há alternativa às sanções econômicas além de uma guerra nuclear devastadora.”

SERGEI SUPINSKY

“Estamos lutando pelos nossos direitos, pelas nossas liberdades, pela nossa vida” Volodymyr Zelensky, presidente Ucraniano.

Trata-se apenas da velha retórica incendiária russa, burilada à perfeição desde os tempos da velha União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Mesmo assim, na manhã da quinta-feira (3), o impacto já se fazia sentir para além da volatilidade dos mercados. Duas das mais importantes agências globais de classificação de risco de crédito, a Moody’s e a Fitch Ratings, rebaixaram a nota russa. A queda foi de seis posições de uma só vez. Até o rebaixamento, a dívida russa estava no nível mais baixo do grau de investimento. Agora, está ao lado de devedores muito arriscados. No caso da Fitch, a nota caiu para “B”. Para comparar, apesar de todos os problemas, a classificação brasileira é “BB-”, três graus acima.

Esse rebaixamento não veio por acaso. Na manhã da quinta-feira as agências internacionais de notícias já informavam, citando fontes de mercado, que havia o risco de a Rússia não honrar um pagamento de US$ 210 milhões de um título com vencimento em 2024. Não é falta de dinheiro. No fim de janeiro, as reservas russas em moeda forte eram de US$ 630 bilhões, quase o dobro dos US$ 358 bilhões possuídos pelo Brasil. Porém, uma das medidas de restrição proibiu o banco central da Rússia de acessar o sistema financeiro internacional, o que impossibilita os pagamentos. E isso poderá provocar o primeiro calote desde a crise russa de 1998, com repercussões e consequências muito graves para o acesso das empresas da Rússia ao mercado de capitais internacional.

O impacto sobre o sistema bancário russo foi rápido e pesado. O Sberbank, maior banco russo na concessão de crédito, anunciou o fim de suas operações na Europa e viu suas ações listadas na bolsa de Londres caírem mais de 95%, sendo negociadas a um centavo de libra. Não se descarta a hipótese de que o banco quebre devido aos resgates. As ações de outras grandes empresas russas também desabaram em Londres. E as cotações do dólar chegaram a 120 rublos (queda de 40%). Recuaram brevemente na quinta-feira (3), quatro dias após o BC russo elevar a taxa de juros referencial do país de 9,5% ao ano para 20%. Mesmo assim, a eficácia dessa medida para estabilizar a economia ainda é questionável.

O movimento do sistema financeiro foi o primeiro, mas não o mais grave. Já na sexta-feira (25), segundo dia da invasão, empresas europeias com atividades na Rússia anunciavam sua intenção de deixar o país. A primeira foi a BP, antiga British Petroleum. A companhia possuía uma participação de 19,75%, avaliada em US$ 25 bilhões, no capital da petrolífera russa Rosneft, uma das maiores do país. Em meados de fevereiro, o CEO da BP, Bernard Looney, comentava que a empresa “seguiria comprometida” com esse investimento. Duas semanas depois, anunciou sua desistência do investimento. Looney e outro executivo renunciaram a suas posições no Conselho da Rosneft. “Estou convencido que isso não é apenas a coisa certa a se fazer, mas também o que é melhor no longo prazo para a BP”, disse ele ao anunciar a decisão.

YURI KOCHETKOV

“A rússia é uma potência nuclear. um ataque direto a nosso país levará a consequências horríveis” Vladimir Putin, presidente Russo.

A anglo-holandesa Shell, a norueguesa Equinor, a americana ExxonMobil e a francesa Total acompanharam a colega inglesa. E esse movimento foi seguido por empresas glamurosas como a Apple ou nem tanto como a ArcelorMittal. Por companhias da nova economia como o Google e da velha economia como a Coca-Cola. Até o fechamento desta edição, 32 empresas haviam anunciado a suspensão ou redução das atividades na Rússia.

IMPACTO NO BRASIL Como fica o Brasil nesse cenário? Na avaliação dos especialistas, a situação vai depender da duração do conflito e da velocidade com que as relações comerciais e econômicas se normalizem. Segundo o economista e especialista em comércio internacional Celso Grisi, em um primeiro momento o ataque da Rússia à Ucrânia deve beneficiar o Brasil. “Haverá uma grande entrada de investimentos, que migrarão da economia russa para cá, e isso deve derrubar o dólar e aumentar a importância do País na produção de alimentos para o Ocidente”, disse. Porém, Grisi afirmou que o Brasil será prejudicado se o conflito for de longa duração. “A economia russa vai padecer e o Brasil será impedido de exportar carne para a Rússia.” Além da economia, há a questão política. A aproximação entre Jair Bolsonaro e Putin dias antes da guerra criou vários inimigos para o Brasil e aumentou o isolamento do País na diplomacia mundial.

SEM TEMPO DE ESPERAR Incerta sobre o futuro da economia, população russa corre para os bancos para resgatar dinheiro e fazer movimentações para o exterior. (Crédito:MICHAL CIZEK)

Já para o professor sênior de agronegócio do Insper Marcos Jank, a alta nos preços das commodities agrícolas pode beneficiar as exportações brasileiras no curto prazo, pelo aumento dos preços e das vendas de proteína animal. No entanto, afimou Jank, haverá problemas se a crise deixar de ser regional e se tornar global, à medida que as sanções comecem a afetar a economia russa. “Temos grandes interesses na Rússia, nem tanto como importador de nossos produtos, mas como exportador de matéria-prima, pois dependemos deles.” Porém, essa hipótese poderá se tornar realidade caso as sanções impeçam a Rússia de exportar e ser paga por essas exportações.

IMAGENS DO HORROR O impacto sobre os resultados das empresas será intenso. Em média, as ações de bancos e de companhias com fortes vínculos com a economia russa, como as petroleiras, recuaram 25% desde o início do conflito. Nem a BP nem qualquer outra empresa se desfaz de US$ 25 bilhões por razões morais ou escrúpulos. Isso ocorreu por pressão dos acionistas e dos consumidores. As cenas da invasão russa são de horror. Pelo menos 1 milhão de ucranianos já deixou seu país. Segundo uma estimativa da Organização das Nações Unidas, o êxodo pode chegar a 4 milhões de pessoas, 10% da população ucraniana, causando a maior crise humanitária da história da Europa. Essa cena, ao lado das imagens de destruição em Kiev e várias outras cidades não combinam com a imagem positiva que as empresas querem passar a seus consumidores, acionistas e demais stakeholders.

EXPORTAÇÃO DE FRANGO Analistas avaliam que, se a crise se prolongar, a capacidade de a Rússia importar produtos brasileiros será prejudicada. (Crédito:Divulgação)

Não é fácil para qualquer empresário olhar para o outro lado e ignorar o custo em termos de imagem de uma associação com Vladimir Putin. Ao anunciar o ataque, o autocrata foi claro. “A Rússia (…) é uma das potências nucleares mais poderosas do mundo. Ninguém deve ter dúvidas de que um ataque direto ao nosso país levará a consequências horríveis”, disse ele. Agora compare essas palavras com o discurso proferido pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky no Parlamento Europeu, cinco dias depois. “Estamos lutando pelos nossos direitos, pelas nossas liberdades, pela nossa vida. Mas estamos lutando também para sermos membros iguais da Europa”, disse ele, recebendo uma longa e entusiástica ovação dos parlamentares ao terminar.

Daniel Leal-Olivas

“Estou convencido que isso não é apenas a coisa certa a se fazer, mas também o que é melhor no longo prazo para a BP” Bernard Looney CEO da BP.

As disputas de poder entre as nações em geral não são claras. Há interesses e segundas intenções de parte a parte. No entanto, a invasão da Ucrânia por tropas russas gerou, de maneira clara, os heróis e os vilões da história, facilitando a mobilização dos acionistas, e as reações de empresários e executivos ­— que devem seguir crescendo.

Reinaldo Canato

“Temos grandes interesses na Rússia, um exportador importante de matérias-primas para o agronegócio” Marcos Jank Professor do insper.

INVESTIDORES A comparação com as guerras da Idade Média é inevitável. Mais de um milênio atrás, a conquista de territórios se dava pelo cerco aos castelos e fortificações. A ideia era que, em algum momento, as provisões dos sitiados se esgotariam. De uma maneira reversa, isso voltou, com duas diferenças. A primeira é que agora quem está cercado é o agressor, não o agredido. A ideia é esgotar os recursos tecnológicos e financeiros da economia russa para forçar suas tropas a se retirarem da Ucrânia. A segunda diferença é que, em vez de soldados, o cerco está sendo realizado pela iniciativa privada, por investidores e consumidores ­— por enquanto mais eficazes que os diplomatas.