No comando de uma das mais prestigiadas fundações filantrópicas do País, a jovem executiva afirma que a união de capital disponível para investimento, grandes causas a serem resolvidas e a chance de deixar um legado relevante está atraindo talentos de volta ao Brasil.

Fundada há 30 anos por Jorge Paulo Lemann, Carlos Sicupira e Marcel Telles, a Fundação Estudar tem como missão identificar jovens lideranças brasileiras com o sonho grande de mudar o mundo. Uma vez selecionados, ganham a oportunidade de estudar nas melhores universidades americanas e apoio para voltar e aplicar aqui o conhecimento adquirido. Entre os mais de 80 mil talentos já mapeados, Anamaíra Spaggiari, que hoje dirige a instituição. “O senso de urgência que temos para formar lideranças é muito grande, principalmente diante da quantidade de problemas que o País enfrenta”, afirmou à DINHEIRO.

DINHEIRO – Há 30 anos, a Fundação Estudar seleciona jovens estudantes brasileiros com potencial para serem líderes de alta performance. Como garantir essa missão em um País em que a educação formal ainda é tão falha?
Anamaíra Spaggiari — O senso de urgência que temos para formar lideranças é muito grande, principalmente diante da quantidade de problemas que o País enfrenta. Esse é um deles. Vivemos em um círculo vicioso em que a educação básica é tão ruim que não consegue dar fundamentos sólidos para uma boa parte da população. Essas pessoas vão chegar com gaps lá na frente. Nosso papel é contribuir na formação de jovens líderes que sonham resolver esse tipo de problema na educação e em diversas outras áreas de atuação.

Que características vocês buscam ao selecionar as futuras lideranças?
Buscamos pessoas com boa educação, que tenham tido acesso a conhecimento de excelência, tenham alta habilidade de resolver problemas e grande capacidade de execução para de fato concretizar as ações necessárias. Além disso, precisam ter um sonho grande, serem ambiciosas e que tenham como propósito deixar um legado.

Na primeira resposta você esbarrou em um ponto crítico: acesso a conhecimento de excelência. Com as deficiências que impactam, de forma geral, a educação básica no ensino público, essa premissa acaba privilegiando alunos do ensino particular?
A Fundação tem um recorte claro em que selecionamos e apoiamos alunos que já estão no ensino superior tanto no Brasil quanto no exterior. E é preciso destacar que a Lei das Cotas, instituída no Brasil na década de 2010, tornou a educação universitária brasileira muito mais inclusiva, mudando e ampliando o cenário de oportunidades para alunos do ensino público. Então, respondendo à pergunta, temos sim vários bolsistas que estudaram em escolas públicas.

“Aprendi com Jorge Paulo Lemann, que foi surfista e joga tênis diariamente, que o esporte é um fator crítico para uma carreira de sucesso” (Crédito:Alan Marques)

Como a Fundação Estudar atua?
Em três pilares. O Líderes Estudar é um programa de bolsa de estudos que existe há 30 anos em que selecionamos talentos de destaque do País para dar a eles a oportunidade de estudar nas melhores universidades dos Estados Unidos. São 30 bolsistas por ano. Nosso objetivo é que eles tenham acesso a conhecimentos que possam ser aplicados na solução de desafios que temos como País em setores como o ambiental, gestão pública, no terceiro setor e na ciência.

E os outros dois?
O Estudar Fora é uma plataforma na qual queremos democratizar a oportunidade de estudar fora ao estudante brasileiro. Nosso papel aqui é mostrar que ter essa experiência internacional é possível. Existem várias formas: bolsas de mestrado, doutorado, vestibular… Mas, é preciso se preparar porque o vestibular, por exemplo, é diferente. Lá, além das notas, eles avaliam a história de vida do estudante, os projetos extracurriculares e valorizam outras inteligências que não a cognitiva que é a avaliada no vestibular brasileiro. Nós damos esse apoio. São 50 alunos por ano. Atualmente, 25% dos brasileiros que estudam em universidades americanas passaram pela Fundação.

Faltou um.
Esse é o pilar ligado à carreira que chama Na Prática. Oferecemos orientação profissional, desenvolvimento de liderança e conexão com o mercado de trabalho.

Levar o talento brasileiro para estudar fora não tem como efeito colateral a fuga de cérebros que optam por não voltar mais?
Influenciamos a nossa rede para que cada um deles se mantenha conectado com um projeto de evolução do Brasil. Nosso compromisso é trazê-los de volta, só que, claro, cada um tem livre arbítrio. Infelizmente, o País sofre sim muita fuga de cérebro. Hoje 87% dos estudantes de tecnologia das nossas universidades estão dispostos a se mudar em busca de carreiras mais relevantes.

Há alguma área em que vocês percebam mais interesse do estudante em voltar?
Enxergamos esse desejo de maneira mais pronunciada naqueles que querem trabalhar com política, com setor público e naqueles que querem empreender. Empreender no Brasil é melhor do que nos Estados Unidos. Aqui temos capital disponível, menos concorrência e mais problemas para resolver. Na política, então, esses talentos enxergam a oportunidade de deixar um legado importante para o País.

Quais são mais difíceis de reter?
Os que querem trabalhar em tecnologia, ciências e em grandes empresas. Para tentar reverter o quadro, estamos estimulando a conexão deles com o mercado brasileiro. Mas aqui tenho um comentário relevante. Para os jovens que querem trabalhar com ciência, como com a cura de doenças, enxergamos que é melhor que fiquem no exterior. O acesso a laboratórios melhores, a mais investimentos e a maior possibilidade de trocas com pesquisadores faz com que o impacto positivo que eles podem gerar para o mundo seja maior se ficarem por lá.

O desenvolvimento da ciência no atual governo é um ponto nevrálgico. Estamos todos assistindo ao desmanche da estrutura de pesquisa no País.
Para quem está fora da academia ou da ciência é difícil entender o impacto que elas promovem porque o resultado aparece no longo prazo. Como no Brasil temos diversos problemas urgentes, como fome e corrupção, perdemos esse foco. Mas temos que buscar o equilíbrio ou o País só ficará apagando incêndio e não dará um salto de evolução. Olha como é grave. O dinheiro para ciência nos últimos três anos caiu de R$ 6,7 bilhões para R$ 2,7 bilhões. Se nem com a pandemia, quando vimos como a ciência salva vidas, nosso governo valoriza a pesquisa, é porque de fato há algo muito errado.

Como vocês estão enxergando o mercado de trabalho e o papel do líder no pós-Covid?
Deveremos ter uma forma de trabalho híbrida e o jovem precisará buscar uma educação formal e extracurricular muito mais forte. O conhecimento técnico exigirá estudo constante — o que chamamos de Lifelong Learning —, e ele precisará buscar experiências fora de sala de aula como em pesquisa e projetos socioambientais para desenvolver habilidades socioemocionais. Muitas das habilidades exigidas de uma liderança a universidade não ensina, e o jovem precisa desenvolver.

É fato que os soft skills (comportamento) estão prevalecendo sobre os hard skills (conhecimentos técnicos) no processo seletivo?
Sem dúvida. Esses são atributos cada vez mais valorizados. Ainda que hoje já existam algumas iniciativas de educação básica, sobretudo nas privadas, com proposta de formação do indivíduo de forma mais integrada, isso não acontece nas universidades.

“Se nem com a pandemia, quando vimos como a ciência salva vidas, nosso governo valoriza a pesquisa, é porque de fato há algo muito errado” (Crédito:Pedro Ladeira)

A pandemia acelerou esse processo?
Sim. Esse processo de humanização nas relações de trabalho já estava em curso, mas se acelerou com a pandemia e com toda a situação de vulnerabilidade emocional que as empresas tiveram de enfrentar e cuidar. Outros fatos também estão contribuindo, como o caso da (ginasta) Simone Biles, que desistiu de provas nas Olimpíadas porque não estava emocionalmente saudável.

Nos EUA há uma ligação do esporte com o desenvolvimento da educação e até da carreira. Como podemos aprender com ele?
Aprendi com Jorge Paulo Lemann, que foi surfista e joga tênis até hoje, que o esporte é um fator crítico para uma carreira de sucesso. A disciplina, a prática deliberada, o foco que são exigidos são fundamentais na condução de um negócio. E a pressão, perguntei. Ele então me disse que foi graças ao esporte que aprendeu a competir, a lidar com a pressão, com o risco e com o erro.

Talvez um erro de vários profissionais seja focar tanto no trabalho que não abre espaço para os aprendizados periféricos.
Tem um estudo interessante e supreendente que mostra que o risco de burnout em pessoas que trabalham com propósito e com terceiro setor é maior. Isso parece ser tão contra intuitivo porque é extremamente gratificante trabalhar nessa área. Só que tem um lado mais obscuro: os profissionais que mais se identificam com as causas para as quais trabalham são os que mais deixam de lado a vida pessoal.

O sonho de uma vida com propósito marca os millennials, uma geração estigmatizada muito ligada à cultura do videogame e da startup na garagem. Como trabalhar esses jovens talentos?
Reduzir pessoas a gerações é não entender a complexidade do ser humano e sua individualidade. As lideranças precisam trabalhar de maneira individualizada com os membros do time para extrair o que cada um tem de melhor. Estamos assintindo ao surgimento de uma liderança mais facilitadora que entende que a inteligência coletiva do seu grupo é, e precisa ser, maior do que a sua própria. Essa busca forçará uma diversidade extrema dos times com inclusão de pessoas diferentes entre si e com interesses diversos.