Dos vários retornos que ouviu sobre suas histórias ao longo dos 20 anos de carreira, o escritor Ilan Brenman se recorda particularmente de um. Após sofrer um acidente grave, um menino perdeu parte de um dos dedos da mão direita e, apesar de ter se recuperado bem, se recusava a voltar para a escola. Alguém, então, deu à criança o livro A Cicatriz (Cia. das Letrinhas), em que Brenman, inspirado em um pequeno imprevisto doméstico com uma das filhas, fala sobre como cada cicatriz conta uma história, e como as histórias aproximam as pessoas. “O menino pediu para a mãe ler mais de cem vezes a história para ele e, depois de uma semana sem ir para a escola, acordou de manhã, pegou o livro na mão e disse: ‘Hoje quero ir para escola para contar a minha história'”, conta Brenman, psicólogo, doutor em Educação e um dos autores da literatura infantojuvenil mais publicados e premiados no Brasil.

Não foi intencional, mas Brenman conseguiu que o menino se colocasse no lugar dos personagens (no caso, da garota também acidentada), compreendesse a atitude dela e, assim, repensasse a própria condição. A obra e as personagens despertaram a empatia do leitor. “A palavra empatia vem do grego, significa a capacidade de se colocar no lugar do outro, de tentar experimentar a emoção sentida por seu semelhante Homo sapiens”, diz Brenman, que é autor, além de dezenas de livros infantis, de duas obras teóricas sobre o tema, Através da Vidraça da Escola e A Condenação da Emília – O Politicamente Correto na Literatura Infantil (ambos da Editora Aletria).

Envolver-se com as histórias, identificar-se com os personagens, colocar-se no conflito, no medo, nas fragilidades é um meio de fortalecimento, explica a pedagoga Denise Guilherme, mestre em Educação e idealizadora de A Taba, empresa focada na curadoria de livros para crianças e jovens. “Quando leio e entro em contato com um universo diferente do meu, vou percebendo que existem outras formas de ver o mundo. Pode ser um primeiro passo para perceber que sua forma de ver não é a única, que a forma que sua família é não é a única, além daquela que você vê e experimenta.”

Para Brenman, a empatia na literatura está diretamente ligada à qualidade do livro. “Não imagino (Leon) Tolstói, Machado de Assis ou Monteiro Lobato começando suas obras com a intenção de serem empáticos. Uma obra literária de qualidade é empática por osmose: quanto mais qualidade, mais verdadeiramente humana ela será e, por consequência, mais identificação causará.”

Assim, o possível “benefício” deve ser precedido da necessidade do autor de dizer algo ao mundo. As histórias do historiador e escritor Fábio Monteiro, por exemplo, nascem de seus incômodos com a vida. Cartas a Povos Distantes (Paulinas), ilustrado por André Neves e vencedor do Prêmio Jabuti de 2016, surgiu da vontade de falar sobre o continente africano e a infância.

Por meio da troca de cartas entre duas crianças, uma brasileira e outra angolana, Monteiro estabelece a relação entre os países. “Me coloquei no lugar de Angola, na situação do quanto é cruel as crianças serem vítimas de guerras. Venho de Pernambuco, Estado onde a cultura negra é forte na maneira de falar, dançar e cantar, e acho que essas memórias não podem ser esquecidas. Queria assegurar a memória de dois continentes irmãos que se complementam, porque nossas dores são parecidas: desigualdade, exploração europeia, pobreza como herança da colonização.”

Diversidade

Mexer com as nossas memórias também coloca em questão as nossas representatividades. Se somos um povo miscigenado, as crianças também querem se sentir representadas nas histórias publicadas. Assim, os livros não podem ser povoados apenas de princesas loiras e esbeltas, certo?

A questão da diversidade está presente no livro A Cor de Coraline (Rocco), em que o autor paulistano Alexandre Rampazo questiona o lápis “cor da pele”. A história nasceu de um estranhamento relatado pela filha durante um trabalho em um abrigo. Enquanto desenhava, um menino negro pediu a ela o tal lápis “cor da pele”. Ele estava em busca do rosa e repetia, sem perceber, o estereótipo preconceituoso.

No livro de Rampazo, Pedrinho pede a Coraline o lápis “cor da pele” emprestado. A menina olha, surpresa, para sua caixa de 12 cores e se pergunta: “De qual pele será que o Pedrinho estava falando?”. A partir daí, Rampazo nos convida a uma viagem de cores e representações, com leveza, humor e afeto, tocando em questões importantes de forma poética, sem lição de moral, e joga o leitor para a reflexão sobre si mesmo em relação ao outro.

Para Rampazo, um livro é só o início para uma série de reflexões. “Empatia, para mim, é também entender o todo de uma situação, entender por que a pessoa tomou determinada atitude. É um processo de amadurecimento percebermos que as pessoas têm reações diferentes com base nas próprias histórias. É, talvez, a chance de ampliar horizontes, de salvar um pouco o mundo da angústia.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.