Sem conseguir enxergar mais do que poucos metros e assustada com a fumaça do incêndio que queimava as casas de ribeirinhos, Luciene Oliveira conduziu seu barco pelas margens do Rio Paraguai para tentar voltar ao Porto de Corumbá, no Pantanal sul-mato-grossense. Entre o fogo e a possibilidade de se chocar com outros barcos, a marinheira teve de lidar com o medo de encalhar em algum ponto. “Nunca vi tão baixo assim o nível da água”, diz. “Faz três anos que o Paraguai não sobe neste pedaço e foi exatamente onde pegou fogo agora.” À pior crise hídrica que atinge a região centro-sul do Brasil em 91 anos, soma-se um ritmo acelerado de focos de incêndio no Pantanal, um dos mais ricos e importantes biomas do País. Neste ano, a área queimada já ultrapassa a média histórica para o período de janeiro a agosto. Isso, antes da chegada do mês em que os casos devem atingir seu pico: setembro.

Em 2020, o número de focos de fogo no bioma bateram todos os recordes históricos. “Os incêndios no Pantanal estão diretamente ligados ao regime de cheia dos rios. Áreas que eram alagadas periodicamente antes, agora não são mais”, diz a bióloga e secretária executiva do Instituto do Homem Pantaneiro, Letícia Larcher. “Esses casos, agora, estão escalonando muito mais rápido.”

As mudanças no Paraguai são notórias. No Porto de Corumbá, de onde partem pequenos barcos de passeio, como o de Luciene, e chalanas turísticas, além de haver reunião de pescadores locais, uma praia com trechos de até 40 metros divide a parte baixa da cidade do rio. Na margem oposta ao porto, o que se vê agora são os restos das casas de alguns ribeirinhos e barcos queimados. Há uma semana, um incêndio atingiu o local devastando a área. “Por milagre sobrou uma pousada que estão construindo. Mas vai saber quantos animais foram mortos ali?” Poucos metros margem adentro as respostas começam a surgir. Carcarás voam baixo em busca de restos. São cobras e pequenos répteis carbonizados que se escondem sob uma camada espessa de fuligem e troncos queimados. Na quarta-feira, alguns deles, como jabutis, retirados no dia do incêndio, foram soltos novamente no local pelos técnicos do Instituto do Homem Pantaneiro.

No porto, a procura por passeios também cai. Os reflexos na biodiversidade serão logo sentidos, apontam os especialistas. Por ora, jacarés, ariranhas, garças e socós retornam aos poucos. O nível baixo da água torna mais fácil ver alguns deles nas margens queimadas do Paraguai.

Os resultados de levantamento da plataforma MapBiomas deixa o problema ainda mais visível. Em 30 anos, 15,7% da superfície de água do Brasil desapareceu. O Mato Grosso do Sul foi o Estado mais afetado, 57% de todo o recurso hídrico foi perdido desde 1990. Essa redução ocorreu basicamente no Pantanal. No período, 75% da água do bioma sumiu.

Por quanto tempo o próprio Pantanal irá resistir ainda é duvidoso e preocupa tanto pesquisadores e ambientalistas quanto Luciene. “Faz poucos dias, levei um turista até perto da Bolívia. Ele só me perguntava: ‘Onde está o Pantanal?'”, diz. “Não tem mais aquelas áreas alagadas, mas está aqui ainda.”

“A seca afeta na pescaria, começa a morrer muito peixe. Esses dias mesmo a hélice do motor da Luciane passou na cabeça de um pintado e matou”, afirma Joílson Müller, de 31 anos, pescador, que também trabalha com turismo. Segundo ele, mesmo sendo proibida, a pesca com rede continua ocorrendo. Desde o ano passado, com a pandemia e, agora, com a seca e os incêndios, ele passa os dias ao lado de seu barco, em terra firme, onde antes costumava ser o leito do Paraguai. Por ali, um “gato” já foi instalado para puxar energia elétrica. Ninguém espera que o banco de areia de cerca de 40 metros volte a ficar submerso. “Eu recebia muito turista para pescar. Hoje, caiu 50% e com os incêndios fica ainda pior”, diz.

Mudança

Nesta quinta-feira, 26, o tempo começou a mudar no Pantanal. Uma frente fria derrubou a temperatura de um dia para o outro de 37 graus para 20 graus. A previsão meteorológica e as nuvens sobre a mata prenunciam que a chuva vai chegar e aliviar os focos de incêndio que ainda restam na região.

A boa notícia, ainda não confirmada, porém, não vem sozinha. Se alivia o fogo, piora a situação do rio e dos peixes. “A chuva vai lavar e carregar toda essa fuligem que está na beira do rio e levar tudo para dentro da água. Isso vai diminuir o oxigênio no Paraguai e aí os peixes vão morrer ainda mais”, diz o pescador.

Cerca de um quilômetro rio acima, Alexandro Fernandes de Holanda, pescador de 38 anos, sabe o que isso quer dizer. Em um acampamento de pescadores, ele é mais um entre os que passam os dias à beira do Paraguai. De pequenos barcos a currais flutuantes que levam o gado das fazendas para as cidades, embarcações de todos os tamanhos ainda atracam ali. “É cada vez menos peixe”, diz, com ar desconfiado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.