Em ano de Copa do Mundo, não é de se estranhar previsões de comentaristas esportivos sugerindo uma possível final entre Brasil e Argentina. Mais do que a condição natural de favoritas históricas, as duas seleções de futebol despertam paixões em ambos os países. Na economia, o campo é de menor rivalidade e de mais consensos. Os dois vizinhos aprenderam a conviver com diferenças e a sustentar a posição de parceria. Nos próximos meses, as administrações poderão buscar uma inspiração a mais do outro lado fronteira: a estratégia para aprovar mudanças estruturais consideradas necessárias para a saúde da economia no longo prazo. O Brasil tentará passar a reforma da Previdência, recém-aprovada pelos hermanos, e a Argentina lançará esforços na batalha para rever as leis trabalhistas, tema superado em Brasília no ano passado. Enquanto no mundial da Rússia só há espaço para um vencedor, no tema das reformas os dois podem se consagrar vitoriosos. Conseguirão dividir o pódio?

Embora em circunstâncias diferentes, os presidentes Mauricio Macri e Michel Temer assumiram com a defesa de uma pauta comum, de medidas austeras e reformas, apresentadas como solução para reverter a frágil situação de suas economias. Em meio à prostração do PIB e ao afrouxamento fiscal, os dois países sofriam com uma crescente desconfiança de investidores, traduzida em indicadores como o ritmo acelerado do déficit e do endividamento. Em 2016, a dívida bruta brasileira, por exemplo, alcançava 78,3% do PIB, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). A da Argentina era de 54,2%. Nessa trajetória, ambos os presidentes encontraram obstáculos semelhantes, como a perda de popularidade e a oposição de partidos que passaram anos no poder e negligenciaram projetos voltados à estabilidade de longo prazo.

Na Argentina, o plano inicial de Macri foi apostar em medidas que não dependiam do Legislativo. O governo revisou subsídios do setor elétrico e de combustíveis (a conta de luz era um terço do que é hoje), uma das principais frentes de déficit sustentadas no governo populista de Cristina Kirchner. Cortou cargos ocupados por funcionários fantasmas e pagou uma dívida histórica com credores internacionais, retornando ao mercado de crédito global. No campo dos ajustes, o reforço importante chegou no início de um segundo tempo, em outubro de 2017, quando a coligação Cambiemos, de Macri, ganhou ampla maioria no Congresso. O entrosamento maior entre o Executivo e o Congresso abriu caminho para garantir, em apenas dois meses, a aprovação das reformas tributária e previdenciária, mesmo com forte resistência popular e diversos protestos. No entanto, lá a aprovação é por maioria simples, diferente daqui onde são necessários 3/5 dos votos.

Impopular: pauta de ajustes enfrenta onda de protestos nas ruas. Em Buenos Aires (à esq.), 30 pessoas ficaram feridas em dezembro. Em Brasília, manifestantes confrontaram policiais contra reforma previdenciária (Crédito:AP Photo/Victor R. Caivano e José Cruz/Agência Brasil)

No Brasil, a pauta principal das revisões estruturais do governo Temer se concentrou na mudança do sistema de aposentadorias. A proposta foi apresentada no final de 2016 e até hoje continua em suspenso no Congresso. A expectativa é a de que a votação saia em fevereiro. O time econômico brasileiro, encabeçado pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, aprovou em julho a reforma Trabalhista, tornando mais fácil a renegociação de contratos e pagamentos ao trabalhador. No Legislativo, conseguiu dar início à introdução do novo ambiente fiscal com a aprovação de uma regra para limitar os gastos públicos. Como na Argentina, outras jogadas importantes aconteceram fora do campo parlamentar, desde a diminuição dos bancos públicos até o fim de subsídios e de práticas intervencionistas em setores estratégicos, como o de combustíveis e de eletricidade. Em Davos para o Fórum Económico Mundial, o presidente Maurício Macri ressaltou, nesta quinta-feira 25, a impotância das mudanças . “Vejo bem as reformas no Brasil, tudo que dá fôlego a nossos sócios ajuda a nós”, afirmou.

Os indicadores começam esboçar tímidos frutos dos ajustes. As previsões do FMI para 2017 indicam um crescimento de 1,1% no Brasil e de 2,5% na Argentina. Em 2018, as projeções são, respectivamente, de 1,9% e 2,5%. A diferença dos números, porém, não é suficiente para dizer quem está ganhando essa partida. “Pode parecer que a Argentina está à frente, mas a economia deles estava mais frágil do que a nossa, demandando mudanças maiores”, diz Juliana Inhasz, professora de economia do Insper. Sobre a previsão de um ritmo de crescimento levemente mais forte na Argentina nos próximos anos, é preciso levar em conta o patamar mais deprimido da economia vizinha. Outra diferença é que, do outro lado da fronteira, a inflação ainda supera os dois dígitos, enquanto por aqui o reajuste de preços foi contido (leia tabelas acima). “É muito difícil combater inflação em um momento de ajustes de tarifas”, afirma Elisabet Bacigalupo, economista sênior da consultoria argentina Abeceb.

Técnicos: O ministro da Fazenda do Brasil, Henrique Meirelles (à esq.), e o seu colega argentino, Nicólas Dujovne, comandam as equipes (Crédito:Reprodução Twitter)

PARCERIA REFORÇADA Para além das expectativas da Copa na Rússia, os empresários brasileiros tem razões de sobras para celebrar com os vizinhos. O ajuste de Macri retirou travas protecionistas e reviveu um dos principais mercados de exportação dos fabricantes nacionais. “Com o problema de preços altos no mercado interno, o calçado brasileiro se tornou competitivo lá dentro”, afirma Heitor Klein, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados). No setor, a expansão ganha cada vez mais força do outro lado da fronteira. Com menos de um mês de vendas em 2018, a fabricante gaúcha West Coast já contabiliza um volume igual ao do primeiro trimestre de 2017. Trata-se de um cenário contrário ao dos últimos dez anos, quando a companhia vinha experimentando uma trajetória de queda nas exportações à Argentina.

A abertura maior aos estrangeiros traz como consequência um aumento no déficit externo argentino, um problema que se soma a um déficit fiscal estimado em 4,5% do PIB em 2017. A retomada das emissões de títulos no mercado externo ajuda a desafogar a situação no curto prazo, mas gera um alerta sobre o endividamento mais adiante. “Não é o ideal, mas a Argentina não tinha escolha”, afirma Mark Jones, pesquisador do Centro de Estudos Internacionais e Estratégia, com base em Washington, nos EUA. “O que se espera agora é que o crescimento futuro cubra essa dívida.” Com uma escalação de medidas nobres e uma tática de ajustes econômicos em campo, Argentina e Brasil colhem gols e impedimentos parecidos. Ambos tentam caminhar para um lugar comum da estabilidade econômica e da confiança dos investidores. Bem diferente da disputa esperada nos gramados em junho deste ano.