Na terça-feira (22) uma assembleia de acionistas da Eletrobras aprovou a capitalização da companhia, com a venda de novas ações da holding estatal do setor elétrico. A reunião aprovou a transferência da empresa para o setor privado, que deverá arrecadar R$ 67 bilhões. O destino dos recursos já está mais ou menos definido. Cerca de R$ 25 bilhões vão para os cofres da União. Outros R$ 32 bilhões vão para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo estatal que será criado para amortecer eventuais aumentos de tarifa ao longo dos anos e subsidiar políticas setoriais. E R$ 9,7 bilhões serão destinados à recuperação de bacias hidrográficas e à contratação de energia termelétrica de reserva nas regiões Norte e Nordeste do País.

“Subestimei a força do establishment contra a privatização das estatais” Paulo Guedes, ministro da Economia (Crédito:Sergio Lima)

A assembleia resolveu vários entraves legais. Pela Constituição, a energia nuclear é considerada estratégica e não pode ser concedida à iniciativa privada. Da mesma forma, Itaipu, a maior usina hidrelétrica brasileira, tem seu controle dividido com o Paraguai e não pode ser privatizada. Na reunião foi aprovada a venda da participação da Eletrobras em Itaipu por R$ 1,2 bilhão. E também a transferência das ações da Eletronuclear, operadora das usinas nucleares de Angra dos Reis, para uma estatal a ser criada para isso, a Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional, já apelidada ENBPar.

 

MÃOS DE FERRO Decisão de Dilma Rousseff de segurar o preço da energia levou o setor ao seu primeiro grande baque do século 21 (Crédito:Mario De Fina)

O processo prevê uma venda de ações da Eletrobras na qual o governo não vai tomar parte. Com isso, sua participação direta e indireta no capital votante, atualmente em 68,6%, vai cair para 45%. A operação visa transformar a estatal em uma “corporation”, empresa sem controlador definido e na qual a parcela de cada acionista individual no capital está limitada a 10%. Essa deverá ser a fatia do governo no fim do processo. A União espera lucrar muito vendendo os excedentes dessa participação, e vai manter uma ação especial, denominada “golden share”, que garantirá poder de veto em alguns casos.

O governo também deve lucrar com a obrigação de os compradores renovarem suas permissões de uso de 22 usinas hidrelétricas controladas pela estatal. O nome é complicado – direitos de outorga –, mas o princípio é simples. Os rios que abastecem os reservatórios da usinas hidrelétricas pertencem à sociedade brasileira e não podem ser vendidos. Podem ser outorgados (ou seja, alugados) para abastecer usinas hidrelétricas. Esses contratos têm de ser renovados periodicamente.

TRIBUNAL DE CONTAS A venda da empresa já havia ganho um bom impulso no dia 15 de fevereiro, quando o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou a matéria. O voto favorável do relator, Aroldo Cedraz, foi acompanhado pelos de outros cinco ministros. O ministro Vital do Rêgo votou contra, por considerar que a avaliação subvaloriza a estatal. Para ele, uma avaliação correta levaria o preço a R$ 130 bilhões, praticamente o dobro do valor aprovado pelo TCU.

Os próximos passos incluem a divulgação dos resultados de 2021, em meados de março, e a aprovação das contas pelos acionistas. Esses passos são exigidos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para que a empresa possa publicar o prospecto da oferta de ações. Como a Eletrobras é uma estatal, isso também tem de ser aprovado pelo TCU. E aí há mais um risco. O Tribunal tem de sancionar a venda das ações de Itaipu e a cisão da participação das usinas nucleares, além de avaliar o valor a ser pedido na oferta pública. A decisão poderia ser tomada já no fim de março. Se não houver discordância, a venda das ações poderia ocorrer já em maio. No entanto, se algum dos ministros pedir vistas, isso emperraria o processo. No cenário mais adverso para o governo, a capitalização teria de ser adiada para agosto, em plena campanha eleitoral, o que assustaria alguns interessados.

 

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O próprio Paulo Guedes declarou estar pessimista. Em uma entrevista na segunda-feira (21), antes da assembleia, ele disse acreditar que a empresa responsável pela geração de energia será privatizada, mas reconheceu que o processo não será fácil. “Subestimei a força do establishment contra a privatização das estatais”, disse ele. Os especialistas torcem para Guedes estar errado. “A privatização da Eletrobras é positiva principalmente para os acionistas minoritários, por isso eles foram favoráveis à aprovação do assunto na assembleia”, disse a economista e ex-diretora de privatização do BNDES, Elena Landau, uma das maiores conhecedoras do assunto. “A privatização é uma garantia de que os acionistas não terão prejuízos com um eventual governo intervencionista.”

CONTA DE LUZ O temor de Elena Landau é justificável. Ao longo dos anos, as barbeiragens na gestão estatal feriram duramente o setor elétrico brasileiro. No início de 2001, a redução dos investimentos e o aumento do consumo provocaram um traumático apagão. Isso levou a uma mudança drástica na matriz energética. Na virada do milênio, 90% da geração era hídrica. No entanto, o apagão mostrou a fragilidade desse sistema, dependente do clima e incapaz de atender às necessidades do crescimento econômico. A solução foi recorrer à energia térmica. Atualmente, a fatia hidrelétrica na matriz energética caiu para 65% e a eletricidade gerada por meio da queima de petróleo e carvão representa pouco mais de 13,1% da matriz energética. Além de poluente, ela é muito mais cara, o que aumentou permanentemente os gastos com energia.

Não foi o único problema. O sistema sofreu seu maior trauma em 2013. No fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, a presidente resolveu baixar na marra o gasto dos brasileiros com eletricidade, e obrigou as empresas a renegociar seus contratos de outorga, além de várias outras intervenções atrapalhadas. A alegria durou pouco. Em 2014, a falta de chuvas obrigou o sistema a consumir energia térmica, mais cara. O reajuste na conta foi prorrogado para depois da eleição e a bomba estourou em 2015. Durante sua breve permanência no Ministério da Fazenda, o ex-ministro Joaquim Levy foi obrigado a sancionar um aumento das tarifas que chegou a 70% em alguns casos.

A privatização é um bom negócio, exatamente por tornar mais difícil a repetição de trapalhadas como essa. “A Eletrobras, se for bem administrada, possui uma imensa capacidade de gerar valor para a sociedade. A privatização pode preservar os ganhos de governança dos últimos anos e aumentar sua capacidade de investimentos”, disse a ex-diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Joisa Dutra. O assunto, agora, está nas mãos do plenário do TCU.