Após sucessivas tentativas fracassadas de contato com os fundadores do Telegram, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem uma reunião marcada em 1 de fevereiro para discutir o uso do aplicativo nas eleições deste ano. Com o intuito de evitar a influência causada pela disseminação de notícias falsas (fake news), o bloqueio do aplicativo é uma das opções.

A ideia do tribunal é evitar a influência da desinformação no âmbito eleitoral, como ocorreu em 2018 e também na eleição de Donald Trump nos EUA e no plebiscito pelo Brexit, que removeu o Reino Unido da União Europeia. No entanto, a medida pode afetar milhões de brasileiros que utilizam o Telegram: segundo pesquisa do Panorama Mobile Time, o app estava instalado em 53% dos smartphones no Brasil em setembro de 2021.

+ Falta de controle de aplicativos mobiliza TSE, que vai decidir se veta Telegram
+ Telegram é desafio da Justiça no combate a fake news nas eleições

“Acho arbitrário, uma medida extrema e autoritária. Não é possível pensar disseminação de ódio e fake news apenas no Telegram e WhatsApp. Com o bloqueio, as pessoas migram para outro aplicativo. Isso não afeta só as redes de extrema-direita, mas todo um grupo de brasileiros. O bloqueio aparece como se fosse uma solução única”, argumenta Bruna Martins dos Santos, pesquisadora visitante no WZB Berlin Social Science Center e membro da Coalizão Direitos na Rede.

Medida semelhante foi adota nos Estados Unidos. A rede social Parler foi retirada da Apple Store e do Google Play em janeiro de 2021, além de ter contratos com a Amazon encerrados devido à veiculação de discursos de ódio, que culminou com a invasão do Capitólio. No entanto, atendendo a pedidos de moderação sobre conteúdos considerados criminosos, voltou a estar disponível para ser baixado. Neste ano, o ex-presidente Trump planeja lançar a sua própria rede social Truth Social, sem as regulações existentes em plataformas como o Meta (Facebook e Instagram) e o Twitter.

O especialista em tecnologia e inovação Arthur Igreja concorda que é extremo bloquear o Telegram no Brasil e é também ineficaz do ponto de vista da disseminação de fake news, embora possa gerar algum impacto. A migração a outras plataformas, considerando a consolidação e a popularidade do Telegram, poderia reduzir a influência das fake news, mas seria apenas uma conquista temporária. Igreja acredita na regulamentação, mas reconhece haver muito a avançar no assunto.

“A internet e a tecnologia são ambientes novos em que as pessoas acham que é uma terra sem lei, o que não é verdade. Pessoas não podem ser tolhidas de criticar, o que é diferente de um relativismo absoluto. Eis a beleza e a desgraça da internet: todo mundo pode falar nela. Mas há parâmetros, e as empresas de tecnologia dizem que não são responsáveis pelo conteúdo gerado”, afirma Igreja.

Santos defende que, em comparação com outras plataformas, como o 4 chain (fóruns de deep web), o Telegram possui alguma regulação e oferece proteção aos dados dos usuários. A ferramenta permite, diferente do WhatsApp, rastrear a origem de um mensagem que se torna viral, por exemplo.

“A gente não tem regulação estatal sobre aplicativos de mensagens com alto encaminhamento. Em vez de pensar medidas para o bloqueio, talvez pensar no bloqueio como última instância: avançar no debate sobre a constituição de representante legal no País às plataformas; medidas de transparência, anúncios, combate à desinformação”, argumenta a pesquisadora.

Em nota à IstoÉ Dinheiro, o TSE afirma que “o ministro Luís Roberto Barroso entende que nenhum ator relevante no processo eleitoral de 2022 pode operar no Brasil sem representação jurídica adequada. O TSE já celebrou parcerias com quase todas as principais plataformas tecnológicas e não é desejável que haja exceções. Barroso e seus sucessores, ministros Luiz Edson Fachin e Alexandre de Moraes, estão empenhados em promover eleições livres, limpas e seguras”.

Questão jurídica

A principal ferramenta de combate às Fake News está paralisada no Congresso Nacional: o Projeto de Lei 2630, de 2020, conhecido como Lei das Fake News. Em vigor, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet não propõem mecanismos regulatórios eficientes contra desinformação em massa.

“A LGPD tem alcance mais vago sobre as plataformas de mensagens privadas. O Marco Civil é incipiente para determinar regras às plataformas. É preciso entender o mecanismo que de fato vai garantir que as plataformas cumpram a lei e que respondam a ordens judiciais. O primeiro pode ser o PL das Fake News quando virar lei, pois fala sobre conteúdos, anúncios e governança das plataformas”, avalia Santos.

“Ano eleitoral nada acontece em termos de reformas e grandes alterações institucionais. O PL não avança porque não há interesse dos atores políticos. As empresas se utilizam da falta de interesse dos legisladores: sabem que não há pressão social, e os legisladores mal sabem o que é tecnologia”, enfatiza Igreja.

A falta de regulamentação sobre compartilhamento de conteúdos digitais é complexo porque envolve diversas variáveis. No Brasil, como há tipificação penal para homofobia, racismo e mesmo injúria ou difamação, é fácil criminalizar esse tipo de abuso – embora não seja rastrear, por exemplo, a origem de um meme racista. Vale lembrar que não existe liberdade de expressão para cometer um crime.

Barroso preocupa-se com a disseminação de conteúdo que coloque em dúvida o processo eleitoral, como a segurança das urnas eletrônicas. O Telegram, por sua vez, afirma que um dos únicos assuntos proibidos e regulados são de terrorismo, especialmente em relação ao Estado Islâmico.

“Qual é o limite é a pergunta a ser feita: há uma linha tênue entre cidadãos falando e compartilhando dúvidas sobre o processo eleitoral e a clara prática de disseminação de desinformação sobre a urna eletrônica. Em 2022 não temos mais como definir. Nenhum país apresentou uma solução consolidada que não viole direitos e combata a desinformação. Europa e Alemanha tentaram com incentivo de transparência, pedido de retirada imediata de conteúdos criminosos. É muito cedo para dizer qual limite funciona e o que deve ser feito”, pontua Santos.

A indústria das fake news

O usuário comum que compartilha desinformação o faz sem saber, mas é apenas parte de uma estrutura editorial muito mais ampla. Outro caminho apontado por Igreja para combater as fake news é a investigação policial de quem financia e fomenta a produção de conteúdos falsos.

“É produção profissional, uma pauta editorial incrivelmente organizada. Campanha de difamação com meias verdades e mentiras absolutas, com produção de vídeos e áudios incríveis, algo orquestrado com estratégia. Espalha-se de forma orgânica, mas não é produzida de forma orgânica”, diz Igreja.

Matéria da Folha de São Paulo de outubro de 2018 apurou que empresários bancaram campanha contra o Partido dos Trabalhadores (PT) durante as eleições, em contratos que chegam, cada um, a R$ 12 milhões. Uma das empresas que teriam bancado desinformação foi a Havan, de Luciano Hang, próximo ao presidente Jair Bolsonaro (PL) – Hang nega a prática.

Esses contratos eram para disparos em massa de centenas de milhões de mensagens no WhatsApp, com preços que variam entre R$ 0,08 a R$ 0,40 por mensagem.

Outra forma de financiamento de desinformação é o YouTube, que remunera canais com milhões de visualizações. Embora alguns tenham sido suspensos, como o Terça Livre, de Alan dos Santos, ainda há diversos canais. O próprio Bolsonaro continua propagando desinformação sobre vacinas impunemente na rede social. Investigados pelo TSE, onze canais ligados à extrema-direita brasileira faturaram R$ 10 milhões no YouTube, segundo reportagem da Veja.

Já que não há regulamentação institucional, com o PL das Fake News travado no Congresso, nem investigações eficientes sobre o financiamento da indústria de mentiras, as eleições brasileiras prometem novamente ser conturbadas.

“Ainda vai piorar antes de melhorar. Há uma dominância industrial sem precedentes e estamos confiando no bom senso dessas empresas o que a legislação deveria fazer. Só melhora quando as empresas forem pressionadas: a Europa regulamentou uso de dados de usuários e depois exigiu LGPD em países como o Brasil para fazer transação comercial”, diz Igreja. “Vai ser um ano emocionante”, conclui.