Na última virada de ano, como faz em todos os Réveillons, o executivo brasileiro Carlos Ghosn viajava de Tóquio para o Rio de Janeiro em um jato Gulfstream G500. “Em algum lugar do Atlântico, a uma altitude de 14 mil metros, meus pensamentos estavam no Japão”, escreveu Ghosn, no primeiro parágrafo de um longo relato, publicado em janeiro no periódico japonês Nikkei Asian Review. No artigo, ele conta, com uma quantidade surpreendente de detalhes, sua trajetória de vida, desde a infância no interior de Rondônia até o topo do mercado automotivo.

Quem o lê hoje, sabendo que, após quase duas décadas, Ghosn está deixando o posto de CEO da japonesa Nissan, nota certo tom de nostalgia. “Apesar de ser uma tradição passar as festas com minha família, uma parte de mim gostaria de poder estar no Japão”, afirmou. Os funcionários da Nissan, montadora que ele ajudou a reerguer, certamente sentiram um ar de despedida. Mas o Japão continuará no radar de Ghosn. Afinal, sua missão, agora, será salvar a Mitsubishi, a única fabricante nipônica no vermelho, em seu terceiro grande desafio na carreira.

Ghosn abdicou do posto de comandante da segunda maior montadora japonesa no dia 23. Ele sai do dia a dia da Nissan para se concentrar em suas tarefas como CEO da francesa Renault, chairman da Aliança Renault-Nissan e, primariamente, chairman da Mitsubishi. Em maio do ano passado, a Nissan fez um aporte de US$ 2,2 bilhões na rival, tornando-se sua maior acionista. Meses antes, um escândalo de manipulação de dados de consumo de combustível abalou as estruturas da companhia, que apresenta resultados decepcionantes. Em seu terceiro trimestre fiscal, encerrado em dezembro, a Mitsubishi registrou uma queda de 19,3% em seu faturamento, que ficou em 1,34 trilhão de ienes (cerca de US$ 11 bilhões).

No Brasil, os carros da marca, que é bem avaliada pelos consumidores, são comercializados pela HPE, que detém os direitos de fabricação e venda. No ano passado, foram emplacados 14 mil veículos, ante 26 mil em 2015. O investimento da Nissan serviu como um alento, nem tanto pelo dinheiro, e mais pela possibilidade de se contar com o talento de Ghosn. “Ele é uma pessoa especial em um trabalho muito desafiador”, afirmou a analista Julie Boote, da consultoria londrina Pelham Smithers Associates, ao Wal Street Journal. “Mas seu alvo final é unir, definitivamente, a Renault e a Nissan.” Antes, terá de lidar com a Mitsubishi.

São dois os desafios que ele enfrentará nessa nova configuração da aliança, que envolve uma terceira parte. O primeiro é reestruturar a gestão da Mitsubishi. Esse trabalho começou com uma decisão simples, mas eficaz: a mudança do idioma nas reuniões, do japonês para o inglês. Era comum, segundo pessoas familiarizadas com o dia a dia da empresa, que as reuniões em japonês se transformassem em um grande teatro de monólogos. Propostas e apresentações, costumeiramente, ultrapassavam duas dezenas de páginas de dados e explicações.

A falta de clareza tornava o processo decisório lento. O cenário, agora, é outro. A mudança forçou os executivos japoneses a serem mais concisos. Propostas não passam mais de cinco páginas. Isso tem dado a velocidade necessária para que a empresa faça as mudanças que precisa para evitar novos escândalos e projetar carros mais adequados às demandas globais. Melhorar a comunicação interna, por sinal, foi a primeira ação tomada pelo executivo quando chegou na Renault, em 1996. “Havia muitos dedos apontados, mas poucas soluções”, relata Ghosn.

Na época, a empresa amargava prejuízo. Dez anos depois, a receita quase duplicou e o lucro foi para a casa dos bilhões (veja quadro). O mesmo aconteceu com a Nissan. Seu desempenho à frente da montadora japonesa o alçou ao estrelato na terra do sol nascente. Ghosn é celebrado como um herói no país e virou até personagem de mangá, o tradicional quadrinho japonês. O segundo desafio é aproveitar as sinergias provenientes da aliança. Em 2015, Renault e Nissan economizaram cerca de US$ 4,5 bilhões em compras conjuntas e compartilhamento de infraestruturas.

“Precisamos tirar vantagem da nossa escala”, afirmou o executivo. “Para isso, é preciso tomar decisões e se certificar de que elas são adotadas pelas três companhias, o que demanda muito trabalho.” De fato, sozinhas, Renault, Nissan e Mitsubishi seriam apenas mais uma competidora, bem atrás das líderes de mercado Volkswagen, Toyota e GM. Juntas, fabricam cerca de 10 milhões de carros por ano, quase o mesmo do que cada uma das três maiores. “A vantagem do líder é pequena e temos uma expectativa de crescimento forte para este ano”, diz Ghosn. Será um presságio?

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